Segundo narrativas da Odisseia de
Homero, depois de longa guerra contra a fortificada cidade de Troia, os gregos,
enganosamente, dramatizaram uma aceitação de derrota e, como homenagem,
ofereceram aos troianos um gigantesco cavalo de madeira oco. Em meio à grande
festa e bebedice, os troianos introduziram o “presente grego” na cidade. À
noite, enquanto dormiam, soldados gregos saíram do cavalo e facilitaram a
entrada de seu exército, que, finalmente, saqueou e destruiu a cidade.[1] O propósito deste artigo é apresentar
alguns princípios fundamentais do método historicista de interpretação e fazer
uma advertência quanto ao “cavalo de Troia” da contrarreforma, infiltrado no
protestantismo.
O historicismo, ou método de
interpretação gramático-histórico, é também conhecido como “sistema
protestante”[2], pois foi adotado pelos reformadores do
século 16. Por sua coerente “visão histórica contínua”[3] em busca do cumprimento das
profecias, ele é “o mais histórico da linha histórica de interpretação
profética”.[4] Segundo este método, o “Apocalipse
está enraizado no livro de Daniel, que lida com períodos sequenciais da
história”.[5]
A seguir, alguns princípios fundamentais
do historicismo:
(1) Sola
Scriptura. Aponta para a suficiência e primazia da
Bíblia. “Ela é suficiente para nos dotar da sabedoria que leva à salvação
(2Timóteo 3:15). É o padrão pelo qual toda doutrina e experiência devem
ser testadas (Isaías 8:20; João 17:17; 2Timóteo 3:16, 17; Hebreus 4:12)”.[6] Prima Scriptura implica que a
autoridade da Bíblia está acima das tradições humanas (Mateus 15:3, 6; Colossenses
2:8); da ciência humana (1 Timóteo 6:20); das emoções e faculdades mentais
humanas (Gênesis 3:1-6); da natureza (Gênesis 3:17, 18), requerendo que jamais
consultemos médiuns espíritas como fonte de conhecimento, mas somente a Deus,
em sua Palavra (Isaías 8:18, 20).[7]
(2)
(2) Tota Scriptura. Significa
a totalidade das Escrituras (2 Timóteo 3:16). Não é suficiente a primazia da
Bíblia; necessitamos das declarações inspiradas da “Bíblia inteira”[8], e não apenas parte dela. Lutero e outros
falharam neste ponto, ao valorizarem partes das Escrituras em detrimento de
outras, o que resultou em “um cânon dentro do cânon”.[9]
(3) Analogia das Escrituras. Conforme
sintetizou Elias Brasil, “se fundamenta no fato de que a Escritura foi
inspirada pelo mesmo Espírito, portanto, existe uma unidade de ensinos e
propósitos que percorre toda a Escritura (Mateus 5:17; João 5:39; Romanos
3:10-18)”.[10]
(4) Discernimento Espiritual. Conforme
1Coríntios 2:11, 14; Isaías 66:2 e Hebreus 11:6, o estudo das Escrituras requer
o imprescindível auxílio do Espírito Santo, humildade, submissão e fé.[11]
(5) Princípio dia-ano.[12] Segundo Timm, em Números 13 e 14
ocorre uma tipologia em miniatura, e em Ezequiel 4, uma simbolização em
miniatura. No primeiro caso, os doze espias e 40 dias (realidades
microscópicas) representavam as doze tribos e 40 anos (realidades
macroscópicas). Em Ezequiel 4, o profeta (realidade microscópica) representava
o povo de Israel e de Judá (realidades macroscópicas).[13] Em ambos os casos, o princípio
hermenêutico provido pelo próprio texto para interpretar os elementos de tempo
envolvidos é o de um dia por um ano (Números 14:34; Ezequiel 4:7). Com base
nestes textos e seus contextos, o princípio dia-ano deveria ser usado apenas em
relação a profecias de tempo nas quais ocorre semelhante simbolização em
miniatura. Este princípio se aplica à profecia de Daniel 7, pois “todas as
principais entidades são representadas em uma clara simbolização em miniatura”.[14]
De acordo com a tradição historicista
protestante, o “leão com asas de águia” (vs. 4) representa o Império Babilônico;
o “urso” (vs. 5) refere-se ao Império Medo-Persa; o “leopardo com quatro
cabeças” (vs. 6) descreve o Império Grego; o “quarto animal” (v. 7) é uma
alusão ao Império Romano; seus “dez chifres” representam a divisão
do Império Romano; e o “chifre pequeno” (vs. 8) é o símbolo de Roma papal.
Portanto, “como as entidades (‘animais’ e ‘chifres’) da visão representam
poderes políticos (impérios) maiores, o elemento de tempo simbólico envolvido
representa um período de tempo mais extenso”.[15] Os períodos “um tempo, dois tempos,
e metade de um tempo” (Daniel 7:25; 12:7); “um tempo, tempos e metade de um
tempo” (Apocalipse 12:14), “1260 dias” (Apocalipse 12:6) e “42 meses”
(Apocalipse 13:5) são um, e o mesmo, período profético. Aplicando o princípio
dia-ano, tornam-se 1260 anos. De igual modo, os “2300 dias”[16] de Daniel 8:14 são 2300 anos, e as
“70 semanas” de Daniel 9 são 490 anos.
Por outro lado, Timm recorda que as
citações de Daniel 12:11 do “diário” e da “abominação desoladora” conectam os
“1290” e os “1335” dias não apenas ao conteúdo da visão de Daniel 11 (vs. 31),
mas também às “2300 tardes e manhãs” de Daniel 8:14 (ver 8:13; 9:27) e ao mesmo
poder apóstata que estabeleceria a “abominação desoladora” em lugar do
“diário”, descrito em Daniel 7 e 8 como o “chifre pequeno” e em Daniel 11 como
o “rei do norte”. Essas interligações confirmam que os “1290 dias” e os “1335
dias” de Daniel 12:11 e 12 são 1290 anos e 1335 anos, pois “compartilham a
mesma natureza profético-apocalíptica de ‘um tempo, dois tempos e metade de um
tempo’ de Daniel 7:25 e das ‘2300 tardes e manhãs’ de Daniel 8:14”.[17]
Quando os reformadores do século 16
viram, ao longo da história, o cumprimento das profecias, acusaram o papado de
ser o anticristo de 2Tessalonicenses 2, e a igreja romana, a Babilônia
eclesiástica de Apocalipse 14, 17 e 18. Entretanto, Francisco Ribera
(1537-1591) e Luiz de Alcázar (1554-1613), ambos jesuítas espanhóis do século
16, em defesa do papado e da Igreja, contra atacaram os reformadores com duas
teorias extremadamente polarizadas: o preterismo[18] e o futurismo. Alcázar, com a visão
preterista, afirmou que “praticamente todas as profecias terminaram com a queda
da nação judaica e com a violenta destruição da Roma pagã. Para ele, o
anticristo seria um imperador romano, como Nero, Domiciano ou Diocleciano”.[19] E Ribera, com interpretação
futurista, argumentou que “o anticristo era um único indivíduo, ainda por vir,
um governante infiel em Jerusalém, o qual cometeria suas façanhas em três anos
e meio literais, no final dos tempos”.[20]
As teorias enganosas de Ribera e Alcázar
jamais suportaram um exame sério das Escrituras. Daniel 7:8, 20 e 24
enfatiza, por três vezes, que o chifre pequeno (o anticristo) surgiria após a
derrota de três das divisões de Roma pagã: visigodos, vândalos e ostrogodos.[21] Os visigodos foram dizimados em 508
A.D., os vândalos foram esmagados em 534 A.D., e os ostrogodos, expulsos em 538
A.D.[22] Através do preterismo e do
futurismo, a contrarreforma apenas visava “dirigir a atenção dos protestantes
para longe do sistema católico medieval. Nisso eles foram bem-sucedidos”.[23] No século 18, o preterismo
influenciou a “escola racionalista dos teólogos alemães”[24] a, no século 19, o futurismo se
infiltrou no protestantismo, passando a ser “amplamente aceito entre os
fundamentalistas”[25] como uma “nova disciplina”.[26]
Conforme Gulley, como resultado da
aceitação do futurismo, “muitas igrejas protestantes não seguem mais o
Magistério dos Reformadores na sua interpretação historicista, mas capitularam
para a visão católica romana do anticristo”.[27] Se isso não é o “cavalo de Troia”
da contrarreforma católica romana infiltrado no protestantismo, o que será?
Especialmente, a vertente futurista, chamada dispensacionalismo, configurou-se
em uma escatomania sensacionalista[28], na forma de um “quebra-cabeça
imaginativo”, onde há “mais ficção que fato”[29].
Os principais pioneiros do
dispensacionalismo foram John Nelson Darby (1800-1882) e Cyrus Ingerson
Scofield (1843-1921). Ambos tornaram-se ministros; Darby na Grã-Bretanha, e
Scofield, nos Estados Unidos.[30] Darby foi líder dos Irmãos de
Plymouth e, por meio de conferências internacionais, conseguiu convencer
líderes influentes de outras denominações de que suas interpretações bíblicas
eram corretas.[31] Enquanto Darby dividiu as
Escrituras em sete dispensações[32], Scofield dividiu-as em oito.[33] As anotações de Scofield, na Bíblia
de referências que leva o seu nome, vendeu milhões de exemplares. Mas é
provável que a série emocional Left Behind tenha feito a maior
divulgação do dispensacionalismo.[34]
Atualmente, os adventistas do Sétimo Dia
são a “única corporação no mundo que ainda mantem o método hermenêutico
historicista”.[35] Rejeitamos o futurismo e o
preterismo não apenas porque ambos os sistemas “foram inventados pelos
católicos romanos na contrarreforma para combater as opiniões protestantes, mas
porque achamos que essas interpretações estão em desarmonia com as
especificações das Escrituras”.[36]
É propósito do autor, no próximo artigo
apresentar uma análise de alguns ensinos do dispensacionalismo à luz da Bíblia.
Até lá, se Deus quiser!
[1]“Cavalo de Troia”, https://pt.wikipedia.org/wiki/Cavalo_de_Troia (Consultado
em 07/01/2017 às 20:13hs).
[2]José
Carlos Ramos, Mensagem de Deus, 1ª ed. (Tatuí, São Paulo: Casa Publicadora
Brasileira, 2012), 29. A seguir: Ramos.
[3]Norman
R. Gulley, Sistematic theologic: the church and the last things (Berrien
Springs, MI: Andrews University Press, 2016), 4: 20. A seguir: Gulley, Sistematic
theologic: the church and the last things.
[5]Ranko
Stefanovic, Revelation of Jesus Christ, 2ª ed. (Berrien Springs, MI:
Andrews University Press, 2009), 12.
[6]Richard
M. Davidson, “Interpretação Bíblica”, em Tratado de teologia adventista do
sétimo dia, 1ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011), 70. A
seguir: Davidson.
[8]Ellen
G. White, Mensagens escolhidas (Santo André, SP: Casa Publicadora
Brasileira, 1985), 1: 17.
[10]Elias
Brasil de Souza, “Métodos Contemporâneos de Interpretação da Bíblia”, Revista
Teológica do Salt-Iaene, janeiro-junho de 1997, 55.
[12]O
princípio dia-ano para interpretar períodos de tempo das profecias
apocalípticas foi defendido por expressivo número de estudiosos desde o período
pré-Reforma ao pós-Reforma. “História da Interpretação de Daniel”, em Comentário
bíblico adventista do sétimo dia, editado em inglês por Francis D. Nichol, e em
português por Vanderlei Dorneles, 1ª ed. (Tatuí, SP: Casa Publicadora
Brasileira, 2013), 4: 26-66. A seguir Nichol.
[13]Alberto
R. Timm, “Simbolização em miniatura e o princípio ‘dia-ano’ de interpretação
profética”, em Revista Parousia, (2º semestre 2004), 36, 37. A seguir: Timm.
[16]Uma
tarde e uma manhã é um dia inteiro (Gênesis 1:4, 8, 13, 23). Ver: Siegfried J.
Schwantes, “Ereb Boquer de Daniel 8:14 Reexaminado”, em Estudos sobre Daniel,
editado por Frank B. Holbrook, 1ª ed. (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2009),
383-392.
[22]Jacques
B. Doukhan, Secretos de daniel, 1ª ed. (Buenos Aires: Asociación Casa
Editora Sudamericana, 2007), 107.
[25]O
termo fundamentalista no contexto protestante significa quase exclusivamente
grupos cuja principal marca era a crença na inerrância da Bíblia. Ray C.
W. Roennfeldt, Clark H. Pinnock on Biblical Authority (Berrien
Springs, MI: Andrews University Press, 1993), 55.
[26]Millard
J. Erickson, Ingroducing Christian Doctrine (Grand Rapids, MI: Baker
Book House, 1998), 362.
[28]Enquanto
a escatologia é o estudo dos últimos eventos, a escatomania dispensacionalista
é uma distorção tanto das profecias como dos fatos.
[29]Samuele
Bachiocchi, Hal Lindsey’s Prophetic Puzzle (Berrien Springs, MI:
Biblical Perspectives, 1998), 13.
[30]Norman
Gulley, Christ is coming! (Hagerstown, MD: Review and Herald
Publishing Association, 1998), 72. A seguir: Gulley, Christ is coming!
[31]Erwin
R. Gane, You Ask God Answers: Vital Questions on Salvation (Wildersville,
Tennessee: Orion Publishing, 1998), 199.
[32]As
dispensações de Darby: 1. Estado paradisíaco ao dilúvio; 2. Consciência ou
Responsabilidade moral;2. Noé; 3. Abraão; 4. Israel; 5. Gentios; 6. O Espírito;
7. Milênio. Gulley, Christ is coming!, 86.
[33]As
dispensações de Scofield: 1. Inocência; 2. Consciência ou Responsabilidade
Moral; 3. Governo Humano; 4. Promessa; 5. Lei; 6. Igreja; 7. Reino. Ibíd.
[34]Jacques
B. Doukhan, The Mistery of Israel (Hagerstown, MD: Review and Herald
Publishing Association, 2004), 49.