Comentário da Lição da ES: A autoridade de Paulo e o evangelho

(Gl 1:10) - A igreja primitiva crescia imensuravelmente naquele tempo. Tanto judeus quanto gentios somavam e aumentavam as fileiras da igreja cristã. No entanto, junto a este crescimento, uma crise começara a se estabelecer no meio da igreja, especialmente dentre os próprios discípulos quanto à natureza da salvação e a critérios quanto à aceitação dos gentios. Muitos dentre os judeus conversos insistiam na ideia de que os gentios precisavam cumprir alguns ritos antes de serem aceitos à fé cristã. Conceitos e tradições meramente humanas eram sorrateiramente mantidos para defender a tradição judaica e Paulo as enfrentou com vigor. De certa forma o apóstolo foi mal compreendido, mesmo pelos próprios cristãos judaicos que viam nele um inimigo à tradição e a tudo que Moisés havia lhes ensinado.

Uma reverência sem precedente ainda permanecia no coração deles quanto a todo sistema legalista e farisaico. De fato, tal reverência não era exclusiva aos novos conversos judaizantes, alguns dentre os próprios discípulos possuíam dificuldades para abandonar as impressões pessoais antigas. Pedro é um exemplo, pois, em alguns casos, passou por grandes dificuldades quanto a rejeitar ou manter alguns ritos. Relacionado aos gentios, ele precisou de uma reorientação espiritual contundente para não ser indiferente quanto à necessidade de anunciar as boas novas na casa de Cornélio (At 10; 15). A crise se alojou no meio cristão e uma explanação mais clara a respeito do evangelho era crucial. Por este motivo é que Paulo escreve a carta aos Gálatas dando detalhes a respeito do papel da lei e da fé na vida dos que são salvos em Cristo. Esta carta foi útil para resolver o impasse daquele tempo e também é importante para minimizar o efeito do legalismo em nossos dias. A exemplo de Pedro, quantos líderes, pastores, anciãos e membros persistem em manter suas próprias impressões do que é ou não necessário para sermos salvos? Quantos em pleno século vigente insistem em transformar em princípio salvífico o que nunca foi claramente revelado? Quantos possuem facilidade para condenar e, através de suas interpretações distorcidas, inviabilizar ou dificultar a simplicidade do evangelho na vida? Muitos de nós temos muito o que aprender com as declarações de Paulo. Podemos entender melhor o motivo de Paulo ter sido escolhido por Deus para trabalhar especialmente com os gentios. Se fosse outro discípulo, talvez os gentios não teriam recebido o evangelho como receberam das mãos e lábios de Paulo. O caminho oferecido aos gentios que conduz a Cristo seria repleto de obstáculos e privações maiores se Paulo não fosse o mensageiro. Hoje não parece ser muito diferente.

Paulo, o escritor de cartas: Difícil, mas esclarecedora

(2 Pe 3:15-18) - Paulo demonstrou ser um escritor prolífero e bem afinado às regras de seu tempo. Suas cartas eram muito bem escritas, estruturadas e elaboradas. Com relação ao livro de Gálatas, embora fosse, em alguns casos, difícil de ser entendido, foi fundamental para alertar a igreja de seus primeiros desafios. Na verdade, a maior dificuldade estava na adversidade que o conteúdo trouxe para os legalistas de seu tempo. Os temas em conflito não eram tão fáceis de serem resolvidos. A luz do evangelho que trazia o cumprimento dos ritos em Cristo não era simples de ser compreendida por aqueles que fizeram dos ritos a essência de sua religião por séculos.  Através desta paixão religiosa aos costumes, Satanás dificultou o entendimento levando-os a distorções teológicas, e por este motivo muitos não conseguiram ver luz nas mensagens de Jesus e dos discípulos.
As cartas de Paulo, assim como a carta aos Gálatas, foram escritas para suprir uma demanda de dúvidas que pairavam nebulosamente na mente de alguns cristãos.
Infelizmente, problemas parecidos podem ser notados em nossos dias, pois existem aqueles que com facilidade acalentam diversas dúvidas, mas não possuem motivação ou ânimo de, através de estudo e pesquisa, resolver tais conflitos. Se não fosse Paulo trazer luz e esclarecimento, o que seria deles? Parece que a história não muda em algumas coisas, pois em nossos dias há aqueles que estacionam no conhecimento superficial e esperam que outros estudem por eles para resolver seus grandes dilemas. Quando tais dúvidas não se resolvem, escolhem sair da igreja e muitas vezes até se tornam inimigos da mesma.
As cartas de Paulo foram escritas para salvar do engano os filhos de Deus daquele tempo e deve ser nossa bússola para o presente. Ela precisa ser estudada à luz de toda a Escritura para que não venhamos cair em nenhum dos dois extremos – do legalismo farisaico, ou do liberalismo e relativismo contemporâneos. Todavia, precisamos nos livrar das interpretações que estão presentes mais em nossas impressões pessoais do que legitimamente na sagrada Escritura.

O chamado de Paulo: O mensageiro e a mensagem  

(Gl 1:9-11) - Não há dúvidas de que Paulo tenha sido chamado por Deus para desempenhar um ministério brilhante. No entanto, para os legalistas daquele tempo as mensagens de Paulo pareciam destoar das mensagens bíblicas que conheciam a respeito da salvação. Infelizmente, o apego distorcido à lei fez com que acreditassem na redenção também pelas obras. É importante entender que zelo e legalismo são duas situações muito diferentes. Zelo é uma virtude cristã que todos deveriam possuir, mas o legalismo foi e é um problema sério na religião cristã. É uma falsa ideia de santificação ou de salvação. É uma espécie de teologia doente. De forma simples e clara, ser legalista não é guardar a lei, mas fazer dela um mérito de salvação. Se a lei pudesse exercer o papel salvífico, com certeza o sacrifício de Cristo não seria completo. No seu tempo, Paulo enfrentou um grupo de pessoas assim, que fazia as obras exercerem um papel que não lhes pertencia.
Por este motivo Paulo inicia a carta inibindo qualquer dúvida quanto ao seu chamado. No entanto, por não concordarem com a mensagem do apóstolo, parecia que havia pessoas tentando minimizar o valor ou o nível do seu chamado. Em nossos dias, algo semelhante pode ocorrer, pois muitos mensageiros, ao ensinarem verdades que entram em desacordo com gostos e compreensões equivocadas, se deparam com pessoas que preferem acreditar que o porta voz não foi enviado por Deus. Jeremias foi ignorado pelo rei, Moisés foi desacreditado algumas vezes, e o próprio Jesus foi crucificado por pregar mensagens estranhas para os líderes religiosos da época. Qualquer mensagem que apele para o povo fazer mudanças de pensamento ou no estilo de vida pode gerar desconforto e ira. Ao invés de se oporem à mensagem, é comum se oporem com veemência contra o mensageiro. O evangelho parece atrair sobre alguns o amor e sobre outros o ódio. Paulo enfrentou circunstâncias muito difíceis por não ser conivente com o falso zelo. Falso porque era uma espécie de legalismo disfarçado de zelo.

O evangelho de Paulo

(Gl 1:20; Rm 1:16,17) - É impressionante e perturbador imaginar que mesmo em nossos dias ainda há pessoas defendendo a salvação pelas obras. É semelhante a um homem que recebe um presente, mas por causa do senso da vergonha por não ter pago absolutamente nada, insiste, de algum modo, recompensar pelo que ganhou. Da mesma maneira, há muitos que se colocam numa condição semelhante, se esforçam para recompensar o que recebeu gratuitamente de Deus com as suas obras. Nem sempre o interesse de recompensar é resultado do senso de gratidão, mas como uma forma de conceber valor à sua resposta, ou feedback, diante do que lhe foi oferecido. Uma maneira de atribuir valor a si mesmo com o objetivo latente de inferenciar a justificativa do merecimento. Outros, conseguem ainda ultrapassar o limite, ao ponto de acreditar que tenham alcançado um tal nível de pureza e perfeição que, de certa forma, os inserem acima da exigência da justiça divina. Esta segunda situação é ainda mais alarmante. Existe uma teimosia por parte de alguns em, inconscientemente, rejeitar a salvação pela graça e de graça. Se não pagarem algo pelo que receberam, não conseguem ter paz, pois vivem como um indivíduo que acredita na possibilidade de ser preso a qualquer momento por não ter pago uma determinada dívida. Atualmente não é mais tão comum, como no passado, encontrar pessoas que defendam abertamente a salvação pelas obras, mas é extremamente fácil encontrar membros, líderes e até pastores ensinando ou vivendo o legalismo travestido de zelo. Usam a nomenclatura do zelo para enxertar suas concepções legalistas. Estes homens e mulheres com tendências ao zelo doentio são como hospedeiros para o parasita do perfeccionismo ou do legalismo. O pior, na maioria das vezes isso ocorre de forma plenamente imperceptível. As pessoas defendem uma posição com algum nível de legalismo e não conseguem ver, se aperceber dos resíduos do mesmo em seus discursos.  Paulo enfrentou gente muito teimosa em seu tempo, o que lhe trouxe muitas dificuldades. Não eram pessoas de fora da igreja, eram irmãos sinceros da própria comunidade cristã que tinham a preocupação com o primor espiritual da igreja. Por este motivo é que nós, por uma questão de sinceridade consciente, devemos ter a humildade de questionar a nós mesmos quanto ao que ensinamos. Será que eu não estaria tendo um zelo com certa essência de legalismo ou perfeccionismo? Não há dúvida, é necessário muita coragem e humildade para fazer este confronto consigo mesmo. Lembre-se, quando Satanás não consegue levar um cristão ao liberalismo, então ele se esforça para levá-lo ao legalismo.
           
Nenhum Outro evangelho: O papel da apologia e da autoridade espiritual

(Gl 1:6-8) - A maneira como Paulo lida com seus opositores neste contexto pode não ser apropriada para todos os tempos, no entanto, quando há teimosia desses indivíduos e consequentemente divisão na igreja, essas pessoas precisam ser encaradas com mais firmeza. Em nossos dias há aqueles que possuem tanta paixão pelo que acreditam que estão dispostos a levar isto avante sobre qualquer custo e sacrifício, mesmo que tenham que dividir a igreja e afastar alguns da fé. Essas pessoas são instrumentos cegos de Satanás que pretendem consciente ou inconscientemente minar a confiança nos líderes, diluir a credibilidade das doutrinas e afastar os outros da verdade que supostamente chamam de mentira. Pessoas assim, que agem como sanguessugas, devem ser enfrentadas com respeito, porém com coragem, ousadia e muita firmeza. No tempo de Paulo havia aqueles que criavam problemas de natureza teológica incutindo dúvida e descrença na verdade, e o apóstolo precisou ser mais contundente devido a gravidade da situação. Interessante notar que Satanás não usa apenas falsos líderes, mas também irmãos que costumeiramente agiam como boas pessoas no meio do povo. Estes, lentamente e com muita sagacidade, iam minimizando o efeito da verdade na mente e no coração dos que a recebiam. Claro que estamos tratando especificamente do tema que envolve a salvação unicamente nos méritos de Cristo. Mas, infelizmente, para os opositores, aqueles que viviam pelas obras, a fé não era suficiente. Uma dosagem de “olha o que eu estou fazendo” possuía para eles algum valor nessa jogada. A ambição humana por mérito, honra ou exaltação, acaba infectando a concepção de como o indivíduo sumariamente deseja ser visto perante a igreja e perante Deus. Por isso agem assim, tentam impressionar os outros e a Deus com a justiça própria que Jesus vai chamar de trapos.

Paulo não falava de si mesmo

(Gl 1:11-20) - Qual era a origem do evangelho de Paulo? Se você estivesse vivendo naquele tempo, como encararia o evangelho ensinado por ele? Hoje não temos dúvidas quanto ao evangelho ensinado por estas cartas, mas e se não conhecêssemos as narrativas do encontro de Paulo com Cristo e o seu chamado? Como encararíamos suas cartas, conselhos e experiências? Se vivêssemos naquela época, e se fossemos judeus conversos, seria possível que encararíamos com estranheza Paulo e sua mensagem?
A origem do evangelho de Paulo não é duvidosa e suas cartas são claras em nos apresentar a certeza da redenção em Cristo. Nada é tão importante em suas palavras quanto esta sublime verdade. Todos nós somos afetados e impressionados pela verdade presente do “evangelho eterno” que deve ser transmitido a todos os povos, descrita em Apocalipse 14:6. O evangelho eterno não é apenas o evangelho completo, mas essencialmente o único evangelho capaz de carimbar nosso passaporte para a eternidade. O sangue de Cristo derramado em nosso favor é a verdade mais sublime e tremendamente importante para a redenção humana (Rm 1:16, 17). As obras, ou melhor, a obediência, não salva, mas torna evidente às demais pessoas que nossa fé é verdadeira. Falar da graça é um tanto perigoso, assim como falar da lei. Corremos o risco de exaltar uma em detrimento da outra. A justificação é a obra de Cristo por nós, enquanto que a santificação é a obra de Cristo em nós. Todavia, sem a graça, mesmo praticando todas as obras, estaríamos completamente perdidos. Quando Jesus nos receber na eternidade, ele não observará nossas vestes, mas a Sua veste revestindo nossa nudez. Em suma, se a obra pudesse redimir o homem, o cordeiro no Antigo Testamento seria dispensado e, consequentemente, a Cruz do calvário seria objetável. A lei também tem a finalidade de mostrar as razões do porquê que sou pecador. Olhando para a lei percebemos a nossa falha e quão necessitados somos de um Salvador. Eu somente deixarei de ser pecador no tempo da glorificação ainda que eu observe todos os mandamentos de Deus. A exemplo de um pano de chão usado por muito tempo, mesmo que seja lavado por diversas vezes, o branco nele existente não será mais o mesmo. Da mesma forma, mesmo que tenhamos abandonado o pecado, a mancha existente em nós, causada pelo pecado, permanecerá em nós. Em outras palavras, podemos e devemos deixar de ser pecadeiros, mas deixaremos de ser pecadores somente com a segunda vinda de Cristo em Seus méritos.

Gilberto Theiss - Graduado em Teologia, Mestrando em Interpretação Bíblica, Pós-Graduado em Filosofia, Ciências da Religião e Pós-Graduando em História e Antropologia. Atualmente é pastor no Estado do Ceará.