Interpretações equivocadas da Bíblia sobre perfeição dão
origem a conceitos como a Teologia da Última Geração, conforme explica o
estudioso. A falta de uma compreensão bíblica sobre as noções de
perfeição e pecado tem feito surgir, há alguns anos, ideias que criam conceitos
como os de impecabilidade. É o caso da Teologia da Última Geração, ou TUG. Nessa
conversa com a Agência Adventista Sul-Americana de Notícias (ASN), o teólogo
Isaac Malheiros fala um pouco do assunto. Pastor adventista há 13 anos, está
concluindo o doutorado em Teologia. Seu interesse sobre o assunto surgiu
durante o período em que cursou o mestrado, ao pesquisar sobre as hermenêuticas
praticadas por diferentes setores da Igreja Adventista.
Malheiros publicou três artigos relacionados ao tema: A última geração, na Revista Adventista, A
hermenêutica da teologia da última geração, na Revista Kerygma e Dicta Probantia: uma reflexão sobre o uso de ‘textos-prova’ na
hermenêutica adventista, na Revista Hermenêutica.
Pode explicar, em
resumo, historicamente, do que se trata a chamada Teologia da Última Geração e
qual sua relação com um conceito biblicamente equivocado de perfeição?
A Teologia da Última Geração (TUG) é um dos pilares do
conceito de perfeccionismo que existe entre muitos cristãos, inclusive
adventistas. Ela ensina que a justificação do próprio Deus, diante das
acusações de Satanás, é o assunto mais importante no Universo, e isso
acontecerá por meio da demonstração de fidelidade da última geração. Em suma,
após Jesus terminar sua obra de intercessão no santuário, a última geração vai
provar que é possível obedecer à lei de Deus.
A TUG inverte a expectativa escatológica: em vez de uma
igreja aguardando a manifestação de Deus, apresenta Deus esperando a
manifestação de humanos perfeitos. Deus precisa ser defendido pela vida
impecável da última geração, o que tende a tornar o homem a figura central do
grande conflito.
Mas, conforme
textos do Apocalipse e mesmo do evangelho de Mateus, não haverá um momento em
que os justos filhos de Deus estarão prontos, perfeitos, sem pecado, para serem
reunidos por Deus nos últimos tempos desse mundo?
Santidade é para todos os crentes, de todas as épocas. No
trecho de Mateus 5:48 é mostrado que ser perfeito não significa impecabilidade,
é amar como Deus ama. O “caráter de Cristo se reproduzir perfeitamente em seu
povo.” Como diz a escritora Ellen White, é o caráter misericordioso e altruísta
que identifica os discípulos (João 13:35).
A definição errada de pecado afeta o conceito de
santidade e perfeição. Pecado vai além das ações pecaminosas, tem a ver com uma
condição, a natureza pecaminosa, o “homem natural”, o “pendor da carne”, a
“concupiscência da carne”. É o homem de Romanos 7 que vive em conflito para
satisfazer a justiça da lei. A natureza pecaminosa é que leva às atitudes
pecaminosas (Mateus 5-7; 15:1-20). O perfeccionismo tende a focalizar os atos
pecaminosos, é minimalista, subestima o poder da natureza pecaminosa, que só
será erradicada na glorificação (Romanos 8:23).
Por conta dos seus
estudos, a ideia de uma geração sem pecado nos últimos tempos pode afetar a
compreensão do papel de Cristo como salvador e mediador?
A TUG e o perfeccionismo fazem uma profunda revisão na
doutrina da salvação e no próprio grande conflito. Ao redefinir pecado e
perfeição, redefine-se graça e o papel da fé e da obediência. Além disso, a TUG
apresenta Deus como dependente dos humanos, pois, após a cruz, Satanás teria
uma segunda chance de derrotar a Deus e derrotaria a última geração. O primeiro round teria
sido com Jesus, mas o segundo e definitivo round será com a última
geração. Ou seja: Satanás só será vencido por meio da última geração. A TUG
obscurece o papel de Jesus, colocando a última geração como a manifestação
suprema.
Mas o conceito de
perfeição bíblica não está ligado a uma perfeita obediência à vontade de Deus,
ou seja, abandono do pecado?
De fato, há um objetivo escatológico na santificação:
Deus espera apresentar a sua igreja como noiva sem mácula nem ruga, “santa e
sem defeito” (Efésios 5:26-27; cf. Hebreus 12:14). Não podemos cair no outro
extremo de denunciar qualquer menção à santificação como perfeccionismo. A
perfeição cristã envolve questões comportamentais, mas o cerne da questão é a
perfeição de caráter, é ser misericordioso como Deus é. Reproduzir o “caráter
de Cristo” não é seguir uma lista de itens permitidos e proibidos, do tipo
“faça – não faça”. A busca do caráter de Cristo levará a mudanças
comportamentais, ao abandono dos atos pecaminosos. Se não acreditarmos que o
Espírito Santo consegue provocar mudanças genuínas nas pessoas, a vigilância ou
esforço humano é que não conseguirão mesmo.
Por que, em dois
ou três tópicos, deveríamos rejeitar a ideia da Teologia da Última Geração?
(1) A Igreja Adventista defende o princípio protestante
da Sola Scriptura. A Bíblia é a nossa única regra de fé e prática, e
a TUG não é uma ideia que surge da Bíblia, mas de uma leitura seletiva dos
escritos de Ellen White (a TUG fala o que Ellen White disse, fala mais do que
ela disse, e também fala o contrário do que ela disse); (2) quando usa a
Bíblia, a TUG não usa o método de interpretação bíblica da Igreja Adventista,
mas, sim, o método texto-prova, que consiste em ir à Bíblia com uma ideia
previamente formada, e procurar textos bíblicos apenas para confirmar o que já
se pensava; (3) a TUG diminui o papel de Jesus ao apresentar temas em
perspectivas equivocadas, exagerando temas periféricos e reduzindo temas mais
amplos, apenas para destacar o suposto papel da última geração na vitória final
no grande conflito. Devemos ter cuidado com teologias que obscureçam a obra de
Cristo, diminuam sua soberania ou tentem roubar-Lhe a glória. [Equipe ASN,
Felipe Lemos]