Para iniciar a reflexão, quero mencionar um vídeo do pastor Cláudio Duarte sobre o Rei Leão. O pregador, conhecido por sua veia humorística, desta vez protagoniza uma reflexão minimalista calcada na história do desenho de 1994, que ganhou uma recente versão live action. O vídeo chegou ao meu WhattApp. Respondi ao remetente que entendia perfeitamente por que muitos evangélicos produzem esse tipo de conteúdo, procurando pelo espiritual em ovo cinematográfico. Entretanto, propor aplicações espirituais a partir de mídias seculares é incabível para adventistas. Entenda o porquê.
Quando se fala de interpretar um texto, a ciência que trata disso é a hermenêutica. Grupos cristãos diferentes chegam a interpretações divergentes da Bíblia porque adotam princípios hermenêuticos diferentes. Para os pioneiros adventistas, um dos princípios hermenêuticos mais sólidos era o sola Scriptura. Isso significa que somente as Escrituras seriam a autoridade final na vida do crente. Note o que escreveu O. R. L. Crosier, em seu artigo “The Law of Moses” (1846): “Enquanto perguntamos para a Bíblia o que o santuário é, deixe todo o preconceito educacional ser excluído da mente.” Segundo o teólogo P. G. Damsteegt, em seu clássico Foundations of the Seventh Day Message and Mission, os pioneiros adventistas interpretavam a Bíblia utilizando o princípio sola Scriptura e a auto-autentificação das Escrituras. Se você quiser saber mais detalhes sobre o sola Scriptura, sugiro que assista a este vídeo e leia este artigo.
Logo, só existe aplicação espiritual das Escrituras, não de produtos da cultura, descobertas da ciência, experiências humanas (mesmo as espirituais) ou tradições culturais e religiosas. A Bíblia é a autoridade final na vida do cristão e, para aplicá-la à vida, necessita-se interpretá-la corretamente. Por isso se busca o conhecimento das ferramentas adequadas para se chegar ao sentido do texto bíblico, fazendo-o dialogar com passagens escriturísticas que tratem do mesmo assunto. Extrair a mensagem do texto garante poder para uma aplicação à vida do cristão.
Pode-se articular o conteúdo bíblico por meio da cultura. Isso acontece quando se usa, por exemplo, uma prática cultural para ilustrar um conceito bíblico – ao tratar de João 12, quando Jesus repreende Simão por não trata-Lo de forma hospitaleira segundo os critérios da época, mencionei hábitos modernos de hospitalidade (convidar a pessoa a entrar, sentar-se no sofá, servir-lhe um copo com água, etc.) durante uma meditação dirigida a funcionários da instituição em que trabalho. Outro exemplo de articulação: a Bíblia não usa o termo “cultura”, embora forneça diversos exemplos de como era a cultura do período em que foi escrita. Igualmente, quando se fala de cosmovisão cristã, não se encontram esses termos nas páginas das Escrituras; contudo, certamente há muito sobre isso na Bíblia que preenche a grade que forma uma cosmovisão (quem é Deus, quem é o homem, o que é real, etc.).
Embora a cultura e mesmo algumas ciências (como filosofia, sociologia, filologia, etc.) forneçam articulações úteis para ilustrar ou ajudar a compreender o sentido do texto, nenhum desses elementos constitui a mensagem per se. A mensagem a ser aplicada deve provir da única fonte: as Santas Escrituras.
Contextualização e suas distorções
Agora preciso passar a outro conceito importante: a contextualização. Para envolver pessoas de outra cultura no processo de evangelização, os missiólogos criaram o termo “contextualização”. Basicamente, contextualizar é criar uma estrutura que funcione como ponte entre duas culturas, baseada em aspectos comuns que tais culturas possuam. Dessa maneira, o evangelho pode soar relevante para uma cultura que o desconhece. Como a cultura ocidental contemporânea perde suas características cristãs que a moldaram, cada vez mais a contextualização é aplicada a iniciativas evangelizadoras contemporâneas. O problema é que, quando se trata de contextualização nesse segundo sentido, o sola Scriptura entra na teoria, porque, na prática, o que se vê é o sola experientia ou sola cultura.
O que quero dizer com isso? Que muitas iniciativas evangelizadoras partem da cultura para atingir a cultura. Ironicamente, não se percebe o contrassenso: ou se segue a cultura ou as Escrituras. Afinal, não se pode servir a dois senhores.
Adventistas mais liberais como Reinder Bruinsma propõem que a igreja se adapte à pós-modernidade, o que envolve uma nova liturgia, um novo estilo de pregação e, certamente, uma nova forma de vivenciar a espiritualidade. É fácil vender uma religião que soe palatável – o difícil é fazer as pessoas comprarem a fé bíblica, que faz a mente secular engasgar com sua verdade intragável para este século (mas que permanece tão necessariamente nutritiva!). Se alguém decidiu unir-se a uma denominação cristã apenas porque foi-lhe prometido tocar o tipo de música que lhe agradasse, foi vítima de clientelismo, não fruto de evangelização. E uma igreja séria não pratica clientelismo, porque reconhece a santidade de Deus.
Ademais, atender às demandas da pós-modernidade em matéria de culto e liturgia é incorrer na adoração carismática que já permeia as igrejas evangélicas desde a década de 1970. Nos anos 1980, surgiu o movimento Celebration dentro do adventismo, que gerou polêmicas discussões, sem, porém, trazer contribuições positivas nem um legado de crescimento espiritual. Hoje os worships evangélicos são novamente os hits do momento e já se infiltraram em cultos adventistas. Porém, é necessário entender o real propósito da adoração bíblica para não se curvar a uma cultura que nivela o conceito de Deus por baixo. (Recomendo o excelente livro Música na Igreja, da CPB.)
Adorar não é equivalente a produzir um show. No show, o artista está em evidência. Na adoração, Deus é o centro de toda atenção. Quando os adoradores são o foco, ironicamente, eles deixam de ser adoradores, correndo o risco de se tornar objeto de adoração.
Voltando à pós-modernidade: não se pode cometer o mesmo equívoco de Bruinsma em pintar o período que estamos vivendo como algo neutro. Em meu texto “Desafios evangelizadores da pós-modernidade para o adventismo”, eu mostro a impossibilidade de criar igrejas para pessoas pós-modernas. Afinal, não existe algo como identidade pós-moderna, uma vez que a pós-modernidade é a quebra dos rótulos, o estar sempre em mudança de identidade. (Leia o texto aqui.) Além disso, movimentos cristãos voltados à pós-modernidade abandonaram o cristianismo tradicional, embarcando em uma jornada espiritual subjetiva e mística. É o caso das igrejas emergentes. (Assista a esta série de vídeos: parte 1, parte 2, parte 3.)
Em suma, é um momento de encruzilhada para o adventismo. Deseja-se uma nova geração de adventistas fiéis, mas eles são alimentados com música pop evangélica, ensinados que o mais importante na missão é a ajuda humanitária (e não orientação bíblica) e têm recebido pouca instrução das Escrituras e dos Testemunhos. Qual será o resultado? (Assista a este vídeo.)
É perturbador saber que músicas carismáticas são tocadas por bandas adventistas, vinhetas de seriados globais tocam em vídeos sobre família e outras coisas semelhantes acontecem em nome da contextualização. Contudo, se você está cansado de ver gente dançando na igreja e dizendo que a Bíblia não proíbe o rock, além daqueles que promovem festas vestidos de super-heróis, tranquilize-se: essas coisas apenas mostram que estamos no fim e que Jesus está voltando!
A solução para crescer saudavelmente
A solução? Reavivamento e reforma! E confiar que os textos inspirados não fornecem somente o incentivo para a missão, bem como as diretrizes. Note este exemplo:
“Muitos supõem que, para se aproximar das classes mais altas, é preciso adotar uma maneira de vida e um método de trabalho que se harmonizem com seus fastidiosos gostos. Uma aparência de riqueza, custosos edifícios, caros vestidos, equipamentos e ambiente, conformidade com os costumes do mundo, o artificial polimento da sociedade da moda, cultura clássica, as graças da oratória, são considerados essenciais [elementos que estavam de acordo com a cultura do tempo de Ellen G. White]. Isso é um erro. O caminho dos métodos do mundo não é o caminho de Deus para alcançar as classes mais elevadas. O que na verdade os tocará é uma apresentação do evangelho de Cristo feita de modo coerente e isento de egoísmo” (Ellen G. White, A Ciência Do Bom Viver, p. 213).
É hora de viver o evangelho em sua pureza, buscando intencionalmente trabalhar pela evangelização de pessoas em nível pessoal, de forma coerente e por meio da atuação do Espírito. Quando há a necessidade de se valer de recursos como associação com filmes, séries e ícones da cultura pop para atrair a atenção, está-se negando que o Espírito Santo, por si só, tem o poder de atrair os jovens (ou seja quem for). Assim, busque fazer o trabalho de Deus por meio dos recursos e instrumentos que Ele disponibilizou. Será o bastante.
(Douglas Reis é mestre em Teologia, doutorando em Teologia [PhD] pela Universidade Adventista del Plata e autor de livros e artigos acadêmicos sobre identidade adventista, desenvolvimento da doutrina adventista e pós-modernidade)
Via Michelson Borges