Créditos da imagem: Márcio Tonetti |
Existem dois tipos de leitores da Bíblia, de acordo com o teólogo Elias
Brasil de Souza. Há os que fazem perguntas para o livro sagrado e exigem
respostas para satisfazer suas curiosidades ou necessidades imediatas. E há os
que permitem que a Bíblia faça as próprias perguntas e ofereça as respostas.
Esse último grupo, que se aproxima do texto bíblico com a humildade de um
aprendiz, é o que tem mais chances de entender o significado original do texto
e ser transformado pela Palavra. Pesquisador de primeira linha, versado nas línguas bíblicas e com um PhD
em Antigo Testamento na Universidade Andrews (EUA) sobre a doutrina do
santuário, desde 2015 ele tem dirigido o Instituto de Pesquisa Bíblica
(BRI, em inglês), o braço teológico da sede mundial adventista. Por seu
discurso e exemplo, Elias Brasil tem procurado ensinar que todo intérprete da
Palavra precisa ser um servo da Palavra. Confira a entrevista a seguir.
Qual
é a função do BRI?
O Instituto de Pesquisa Bíblica existe para promover o estudo e a
prática da teologia e estilo de vida adventistas, assim como entendidos pela
igreja em nível mundial. Fornecemos recursos teológicos para a administração e
departamentos da Associação Geral. Procuramos identificar áreas de discussão
doutrinária e teológica que necessitam ser estudadas. E o fazemos a partir de
um compromisso com as Escrituras. Também procuramos incentivar e facilitar o
diálogo da comunidade teológica adventista, promovendo assim a unidade da
igreja. Apesar de nossa equipe fixa ter apenas cinco pesquisadores, duas vezes
ao ano nos reunimos numa comissão com cerca de 50 acadêmicos do mundo todo
(Bricom).
Como
o trabalho do instituto pode ter mais impacto na igreja local?
Nosso serviço à igreja local se dá por meio de nossas publicações,
algumas vendidas em português pela CPB, como Teologia do Remanescente e Casamento: Princípios
Bíblicos e Teológicos. Também temos uma newsletter eletrônica
chamada Reflections, que pode ser acessada gratuitamente em nosso site: adventistbiblicalresearch.org. Todavia, nossa maior
contribuição para as congregações se dá de forma indireta, por meio da revisão
da Lição da Escola Sabatina, do Manual da Igreja e das declarações oficiais da
denominação e crenças fundamentais da igreja.
Como
a igreja pode ter um contato mais significativo com a Palavra, a ponto de ser
transformada por ela?
Por meio da Bíblia, Deus fala conosco e nos transforma. Portanto, cada
oportunidade que temos de estudar as Escrituras deve ser vista como um presente
de Deus. Isso inclui o estudo diário, acompanhado da Lição da Escola Sabatina,
que jamais deveria ser negligenciado; e os sermões na igreja, cuja base só pode
ser a Palavra de Deus, nossa regra absoluta de fé e prática. O ponto é que
qualquer contato com as Escrituras deve ser marcado por uma atitude de oração e
reverência. Afinal, dependemos do Espírito Santo para a compreensão e aplicação
da Palavra.
O
senhor vê problema no método “textoprova”, ainda comum na apologética popular
adventista?
O problema dessa abordagem é que com a devida combinação de textos se
pode provar qualquer coisa. Portanto, apesar de útil quando usamos cadeias de
textos para defender determinados ensinamentos ou mesmo para elaborar um
sermão, precisamos verificar o contexto imediato das passagens e o mais amplo
da Bíblia, a fim de não contrariar a mensagem original intencionada por Deus.
Além
de tomar esse cuidado, outro ponto que pesa é a cosmovisão do intérprete.
Sem dúvida, porque a cosmovisão poderia ser comparada às lentes com as
quais a pessoa enxerga a realidade ao seu redor. É um conjunto de crenças que
respondem às questões básicas, como “de onde viemos”, “para onde vamos”, “se
Deus existe”, “quem Ele é” e “o que é a verdade”.
Partindo
desse ponto de vista, para interpretar a Bíblia corretamente é preciso ter a
própria cosmovisão moldada pela mensagem bíblica.
Certamente. Como adventistas, cremos que nossa cosmovisão se fundamenta
na Bíblia e se articula na grande história que vai da criação, como relatada
nos primeiros capítulos de Gênesis, até a nova criação, conforme descrita em
Apocalipse 21 e 22. Entre esses dois polos desenrola-se o grande conflito
cósmico entre o bem e mal, no qual o Deus criador e redentor está trabalhando
para resgatar definitivamente a humanidade do poder e dos efeitos do pecado.
Essa é a única “macro história” que responde de forma coerente as questões
existenciais que têm intrigado e angustiado o ser humano.
Então,
a mudança de cosmovisão tem relação direta com o processo de conversão e
discipulado?
Uma cosmovisão pode ser mudada a partir da conversão. É um processo
gradual que envolve não somente a mudança de estilo de vida, mas uma nova
maneira de pensar e ver o mundo. Como resultado da conversão e do crescimento
espiritual, passamos a ver o mundo com as lentes da Bíblia (Rm 12:2) e a pensar
com a “mente de Cristo” (1Co 2:16; Ef 4:22-24).
Que
impacto a cultura contemporânea tem exercido sobre a interpretação da Bíblia?
A cultura contemporânea, especialmente em seus aspectos pós-modernos,
tem enfatizado a autoridade do leitor e não do texto. Nessa abordagem, o
intérprete não está preocupado em determinar a verdade objetiva intencionada
pelos autores bíblicos, mas busca interpretar a Bíblia unicamente a partir de
sua experiência pessoal. O resultado disso é uma leitura sentimental,
relativista e contraditória da Bíblia, cuja validade deve ser determinada pela
experiência de cada leitor ou comunidade.
Diante
desses riscos, o que seria uma atitude equilibrada em relação à cultura?
Se definirmos cultura como as crenças, linguagem, costumes e
manifestações artísticas de determinado grupo, num lugar e tempo particular,
percebemos que não há como viver fora de uma cultura. Apesar de o pecado ter
nos afetado, a produção de elementos culturais é fruto da capacidade criativa
que Deus outorgou à humanidade quando formou Adão e Eva à sua imagem e
semelhança (Gn 1:27, 28). O ponto é avaliar nossa cultura e as demais à luz da
Bíblia e rejeitar os elementos e ídolos culturais que contradizem a Palavra de
Deus.
Neste
mundo tão multicultural e cada vez mais globalizado pelas tecnologias de
comunicação, quais são as principais tensões teológicas enfrentadas pela
igreja?
Somos mais de 19 milhões de adventistas ao redor do mundo, espalhados
por inúmeros países, etnias e falando diversos idiomas. Portanto, é normal
haver diferenças entre nós em certas áreas. Na verdade, as diferenças
enriquecem a igreja mundial. O que de fato surpreende é que, em meio a tamanha
variedade, tenhamos a unidade que hoje desfrutamos em termos de um conjunto de
crenças fundamentais. Quanto aos desafios, a autoridade da Bíblia é um tema que
precisa de constante atenção, especialmente no que concerne aos métodos de
interpretação. Os demais desafios que a igreja enfrenta em certas regiões do
mundo basicamente derivam dessa questão, como ideias evolucionistas que negam o
relato bíblico da criação e certas posturas em defesa de sexualidades
alternativas. Mas talvez o maior desafio seja o trabalho que precisamos fazer
com os novos conversos – e outros não tão novos assim – para ajudá-los a pensar
a partir de uma cosmovisão adventista e a viver o estilo de vida adventista.
Em
favor da unidade
Após servir como pastor distrital em Rio Grande e Taquara (RS) por cinco
anos, o gaúcho da pequena cidade de Tapes trabalhou dez anos com educação
teológica na Faculdade Adventista da Bahia, onde também foi diretor do
seminário. Até ser surpreendido com o convite para integrar o BRI, em 2012,
Elias Brasil de Souza, 55 anos, imaginava que concluiria seu ministério em sala
de aula. Desde 2015, quando foi eleito para dirigir o instituto, ele tem
viajado pelo mundo, participado de inúmeras comissões e lidado com diversas
questões doutrinárias e administrativas. Elias diz confiar no poder e na
sabedoria de Deus para vencer as próprias limitações e contribuir para a
solidez teológica da igreja. Nos Estados Unidos, ele vive com a esposa, Mágela,
e os dois filhos, Guilherme (23) e Gustavo (17).
(Texto
publicado originalmente na edição de julho de 2016 da Revista
Adventista)