Moisés é uma das figuras centrais do judaísmo. Junto aos Patriarcas e os
reis Davi e Salomão, sua existência permeia a vida e provê identidade para o
povo judeu. Ele é aquele que D-us escolheu para guiar os passos da nação ao
sair do Egito, e através dele D-us estabelece uma aliança com aquele povo. Ele é o grande instrutor de Israel, Moshê
Rabenu, Moisés nosso mestre. Ele é a figura que representa o ápice do
relacionamento contínuo com Deus. Embora Abraão seja o pai de todos nós, não é
Abraão aquele que provê o limite da vida humana, mas Moisés. Ninguém pode viver
mais do ele, porque ninguém é digno de pisar a Terra de D-us, mais que ele.
Sua
vida é um exemplo de comunhão, submissão e amizade e sua partida estremeceu a
própria confiança do povo na realização da promessa de Deus Como poderiam eles
sobreviver sem o grande instrutor, o grande mediador entre eles e Deus?
A morte de Moisés foi enfrentada de formas variadas dentro da História
judaica. A reação imediata foi de dor e luto. Durante 30 dias, eles prantearam
de acordo com o texto de Deuteronômio 38:6-8. Após este período nada mais é
dito sobre a memória de Moisés e o estado do povo, porque a idéia da Torah é o
movimento sempre para adiante, agora em direção à conquista, liderada pelo
sucessor de Moisés, Josué. E esta situação, de simples aceitação da morte do
grande líder, segue por quase todo o período da Bíblia Hebraica.
Isto não quer dizer que Moisés não fosse lembrado. De fato, Moisés é
sempre lembrado e seu nome é citado em todos os períodos da história judaica.
Comum como possa ser a lembrança de sua vida, sua morte não é tão comumente
mencionada. De fato, na Bíblia Hebraica não ocorre nenhuma menção à sua morte, exceto
as de Deut. 34 e Josué 1, nos eventos circundantes a própria morte. Isto
certamente se deve ao fato de que na mentalidade bíblica, a importância do
homem está relacionada com seus atos em vida e sua comunhão com O D-us de
Israel. Por isto, Moisés é sempre mencionado em relação com os seus atos, seja
como Servo de D-us (Sempre em Josué), ou como intermediário das promessas e
leis (e.g. 2. Cron. 34:14).
A este aspecto vivencial da cultura bíblica deve-se acrescentar o
elemento misterioso que envolve a morte de Moisés, conforme descrito em Deut.
34. Cada elemento da narrativa parece convergir para envolver a morte do grande
líder em um mistério proposital. 1)
Moisés sobe ao monte “sozinho”; 2) Ele morre sozinho; 3) D-us mesmo providencia
seu enterro em um lugar desconhecido. Este engendrado mistério envolvendo a
morte de Moisés certamente serviu ao propósito de impedir que o povo de Israel
o transformasse em objeto de culto e adoração.
Diferentes correntes judaicas em diversos tempos lidaram de maneiras
distintas com o mistério envolvendo o falecimento de Moisés. Algumas destas
tradições foram preservadas pelo Midrash, Targum e outros autores judeus, como
Josefo.[1]
A descrição que Flávio Josefo faz da morte de Moisés aparece em
Antiquidades Judaicas 4.325-326, citado aqui na tradução em português pelo Pe. Vicente Pedroso, publicada pela CPAD:
Quando ele chegou ao
monte Nebo, que está em frente a Jerico e é tão alto que de lá se pode ver todo
o país de Canaã, despediu-se dos Senadores, abraçou Eleazar e Josué e deu-lhes
o último adeus. Ainda ele falava quando uma nuvem o rodeou e ele foi levado a
um vale. Os Livros Santos, que ele nos deixou, dizem que Moisés morreu porque
se temia que o povo não acreditasse que ele ainda estava vivo, arrebatado ao
céu por causa de sua eminente santidade. Faltava somente um mês para que, dos
cento e vinte anos que viveu, ele completasse quarenta no governo daquele
grande povo, cuja direção Deus lhe havia confiado. Ele morreu no primeiro dia
do último mês do ano, que os macedônios chamam dystros, e os hebreus, adar.[2]
Nesta tradução, Josefo diz que Eleazar e Josué, além dos líderes de
Israel, acompanharam Moisés ao monte, algo que está ausente do texto bíblico.
Além disso, Josefo acrescenta que uma nuvem envolveu Moisés e o levou dali
“para um vale”. Por último, ele indica que a morte de Moisés não ocorrera
realmente, sendo escrita apenas por sua piedade.
Esta última cláusula parece contradizer Deut. 34:5-6 que afirma
categoricamente que Moisés morreu, além de estar também em conflito com o
restante do texto do próprio livro Antiguidades, que nas linhas seguintes
descreve o momento da morte Moisés, inclusive com a data em que teria ocorrido,
1 de Adar.
A tradução do Padre Vicente Pedroso é intrigante. Ela destoa da tradução
clássica deste verso que diz:
And as he was going to embrace Eleazar and Joshua, and was still
discoursing with them, a cloud stood over him suddenly, and he disappeared in a
certain valley, although he wrote in the holy books that he died, which was
done out of fear, lest they should venture to say that, because of his
extraordinary virtue, he went to God. (Ant 4:326)
Enquanto a tradução em português afirma que a menção em Deut. 34 à morte
de Moisés foi escrita porque o povo não creria que ele teria subido ao céu, por
sua santidade, a tradução de clássica diz que a narrativa da morte de Moisés
tinha por objetivo exatamente impedir que o povo cresse que ele havia subido ao
céu.
A divergência está relacionada à compreensão da expressão grega δείσας μὴ (deisas me).
O sentido básico do termo deisas é medo, temor, seguido por uma
partícula relativa ou pela negativa me,
o sentido é “temor de não”.
Não obstante, quando seguida por um subjuntivo, ela pode ter o sentido
positivo [3].
Este subjuntivo no texto é τολμήσωσιν
(tolmesosin), ousar, ter coragem seguido pelo verbo εἰπεῖν
(eipen) dizer. Desta maneira, a
forma direta do texto seria deisas me
tolmesosin eipen que traduzido é “pelo temor de que não ousassem dizer” ou
“pelo temor de que ousassem dizer”.
O uso comum da
expressão em Josefo e na literatura
grega parece apontar para a compreensão tradicional, segundo ao qual o verso
está dizendo que Moisés não queria que o povo dissesse que ele havia retornado
para a divindade.
De qualquer maneira, o
texto não deixa de dizer o que diz: que Moisés foi encoberto por uma nuvem e sua morte foi
registrada por um certo temor. Contrário
a James Tabor[4] que enxerga o texto como uma
declaração de que Moisés havia realmente morrido, a evidência é de que o texto
afirma o contrário.
Primeiro, o texto é
explícito em dizer que a morte de Moísés estava registrada por sua modéstia.
Pela necessidade de impedir que o povo de Israel o considerasse de extrema
santidade e por isso digno de voltar para D-us. O foco do texto é a humildade
de Moisés contrastada com sua “elevada santidade”. Por isto, mesmo que ele tenha ascendido ao
céu, no texto de Josefo, sua piedade e humildade fizeram com que sua “morte”
fosse escrita.
Que o texto fala de uma
ascensão é indicado, por exemplo, pela inclusão de uma nuvem na narrativa, que
oculta Moisés da vista dos homens, e, sobretudo, pelo termo ἀφανίζεται
(aphanizetai), desaparecer, que ele
utiliza também na narrativa da ascensão de Elias em Antiguidades 9.28. O mesmo
termo é utilizado por Josefo em vários outros lugares no sentido de
desaparecer, ou de ser destruído (cf. Ant. 1.71, 2.219, etc.). Na própria
narrativa do desaparecimento de Moisés, o mesmo termo é usado outra vez em
4.323, no sentido de desaparecer da vista.
Na narrativa de Elias, o termo é utilizado como um sinônimo de ἀφανεῖς
(aphaneis), cuja ideia é ser oculto,
escondido, que ele aplica também a Enoque.
Desta maneira, fica
claro que para Josefo, Moisés passara pela mesma experiência que havia passado
Enoque, e que passaria Elias. A argumentação de Tabor, baseada na expressão
grega πρὸς τὸ θεῖον αὐτὸν ἀναχωρῆσαι,
não é convincente, porque todo o peso do texto está na humildade de Moisés e a
ação de escrever sua morte, como dispositivo para manter a sua humanidade e
prevenir o povo de adorá-lo. Além disso,
como Paul Spilsbury observa,
Josefo utiliza uma divisão histórico-teológica, segundo a qual a humanidade
antes do Dilúvio vivia uma “era dourada” de contato com a Divindade.[5]
Como harmonizar esta
compreensão com a referência explicita à morte de Moisés nos textos
subseqüentes e mesmo no contexto imediato? Esta questão isola os textos não
compreendendo o seu todo. As referências
a esta morte de Moisés devem ser interpretadas dentro a partir da declaração de
que a descrição de morte de Moisés foi feita por humildade e não o contrário.
Logicamente, uma vez que Josefo reconhece a existência textual da morte de
Moisés e ele se propõe a narrar os acontecimentos de forma paralela ao texto da
Bíblia Hebraica, ele precisa seguir o esquema narrativo e literário do texto
base. Não obstante, em vários momentos, Josefo, mantendo o texto, dele se
afasta acrescentando informações não constantes nele.[6]
Por isto, Josefo segue
falando da morte de Moisés, muito embora ele esteja apenas se referindo ao
evento narrado no texto de Deuteronômio, enquanto mantém que esta morte é
apenas narrativa, pois, de fato, Moisés desapareceu da vista dos homens, ou
seja, não morreu. Isto é ainda corroborado pela declaração de abertura do livro
5 das Antiguidades, que declara explicitamente que Moisés foi “tomado da
presença dos homens” (ἐξ
ἀνθρώπων ἀπογεγονότος)
(Ant 5:1). O termo ἀπογεγονότος não pode significar
apenas “morrer” neste verso, porque ele está ligado à preposição ἐξ indicando
afastamento. Aqui, portanto, Josefo
reforça a idéia do livro anterior, segundo a qual Moisés foi “afastado dos
olhos” através de uma apoteose, ou ascensão.[7]
É por isto que é
correto afirmar que na mentalidade de Josefo, Moisés não morreu. Neste sentido,
Josefo é parte de um conjunto de tradições que afirmavam explicitamente a
recepção de Moisés nos céus, seja pela Ressurreição – como parece evidente de
Judas 9, apoiado no Assunção de Moisés
– ou pela Ascenção direta sem passar pela morte. Ademais, é claro que os autores do Novo
Testamento, judeus, estavam conscientes deste conjunto de tradições e, por seu
uso, as recebiam como válidas[8].
Textos como Romanos 5:12-14 e Judas 9,
parecem apontar para uma compreensão neotestamentária de que Moisés
havia sido liberto do império da Morte.
Sérgio H S Monteiro, M.Th.
[1]
O Pseudo-Filo apresenta uma terceira via, ao negar completamente a morte de
Moisés.
[2]
Josefo, Flávio. História dos Hebreus
(CPAD, São Paulo, 2004), Livro 4. 179
[3] Cf. Henry George Liddell et al., A
Greek-English Lexicon ("With a revised supplement, 1996."; Rev. e
atualizada completamente; Oxford; New York: Clarendon Press; Oxford University
Press, 1996), 373: “folld. by a relat. clause, mostly with μή .., and folld. by subj., Il.1.555, etc.; rarely by indic., δείδω μὴ .. νημερτέα εἶπεν Od.5.300; ὃν δέδοικʼ ἐγὼ μή μοι βεβήκῃ S.Ph.493, cf. OT767, Th.6.88; δέδοιχʼ ὅπως μὴ .. ἀναρρήξει κακά, = δέδοικα μή .., S.OT1074, cf. D.8.53, 9.75, Ar.Eq.112; μὴ δείσῃς ποθʼ ὡς .. ὄψεται S.El.1309; δ. μὴ οὐ, folld. by subj., δέδιμεν μὴ οὐ βέβαιοι ἦτε Th.3.57, cf. Hdt.7.163, X.Mem.2.3.10, E.Andr.626, etc.; also δ. ὅπως λάθω E.IT995; μὴ δείσητε ὡς οὐχ ἡδέως
καθευδήσετε X.Cyr.6.2.30.”
[4] Tabor,
James D. ""Returning to the Divinity": Josephus's Portrayal of
the Disappearances of Enoch, Elijah, and Moses." Journal of
Biblical Literature 108, no. 2 (1989): 225-38. doi:10.2307/3267295.
[6]
Cf. o estudo de Salomo Rappaport, Agada
und Exegese bei Flavius Josephus (Wien Alexander Kohut Memorial Foundation,
1930).
[7]
Para uma descrição das tradições judaicas quanto à Morte de Moisés e sua
ascensão, veja o ensaio de Haacker,
K., Schafer, P., 'Nachbiblische
Traditionen vom Tod des Mose', in: O. Betz, K. Haacker, M.
Hengel (eds.), Josephus Studien. Untersuchungen zu Josephus, dem antiken
Judentum unddem Neuen Testament (FS O. Michel; Gottingen, 1974), pp. 147-174
[8]
Veja Monteiro, Sérgio. O Novo Testamento e as Tradições Judaicas (disponível em
www.academia.edu).