O Cristão e a política: Deveres e cuidados


Que o homem é responsável em promover a ordem social, cidadania e agir com seriedade diante da política e das autoridades é claramente ensinado na Escritura. A responsabilidade se estende a todas as áreas da vida, inclusive no que diz respeito às práticas que ajudam a construir os alicerces que definem os direitos e deveres do cidadão. A resposta de Caim: “Acaso sou eu tutor de meu irmão?” (Gn 4:9), é um claro e bem sonoro sim. A resposta de Deus à indagação de Caim é mais profunda e séria do que imaginamos. Embora haja resistência por alguns, os cristãos, segundo a Bíblia, devem exercer probidades sociais e governamentais não somente aos demais habitadores como também aos soberanos.


Segundo a descrição de Paulo, mesmo sob o regime do injusto império Romano, obediência e honra perante as autoridades são deveres de todos que partilham da competência cristã (Rm 13:7)[1]. No mesmo capítulo (v.1), Paulo reforça o pensamento de que “todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por Ele instituídas”. “Instituídas” porque é pela permissão de Deus que homens e mulheres sobem ao poder. As oportunidades estabelecidas àqueles que receberam, recebem ou receberão o cetro, somente se definem porque o Deus supremo, verdadeiro, único e legítimo possuidor de autoridade e poder lhes deu total permissão para exercer domínio sobre os povos. A exemplo de Paulo, Pedro, provavelmente vivendo na época de Nero, ainda via o Estado como designado por Deus para a manutenção da ordem e de valores.[2] Retratando a condição do cristão perante os poderes terrestres, não deixou por menos ao escrever: “Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor; quer seja ao rei, como soberano; quer às autoridades [...]” (I Pe 2:13-14). Para os cristãos em Creta, Paulo, mesmo a despeito do julgo romano, solicitou a Tito que lembrasse o povo de sujeitarem-se em obediência às autoridades civis (Tt 3:1)[3].

Observe outros pontos relevantes que fortalecem os deveres cristãos de respeito, seriedade e obediência às instituições políticas/governamentais de uma nação:

(1) Foram instituídas por Deus (Rm 13:1b);
(2) rebelar-se contra a instituição (política/governamental) é ir contra o próprio Deus (v.2);
(3) foram instituídos com a finalidade de diluir o progresso do mal e, de certa forma, proteger os que praticam o bem (v.3); 
(4) Este tipo de instituição é serva de Deus e um instrumento que Ele utiliza para promover algum grau de justiça (v.4);
(5) A submissão e a continência para com a instituição governamental são questões de profunda consciência cristã (v.5); e
(6) devemos ser fieis, inclusive, nos tributos porque as autoridades também estão a serviço de Deus (v.6);

Portanto, há valores cristãos que definem nosso comportamento ético, contido e respeitoso quanto aos sistemas que nos administram como sociedade. Embora falte ética e compromisso de cidadania por parte de muitos políticos, é inegável observar o quão pior seria a civilização se não houvesse estas instituições. A democracia, a cidadania, os direitos e deveres, a ordem, a civilização, a organização e direitos trabalhistas, a contenção ou diluição da perversidade e malevolência e os direitos humanos, apesar de estarem distantes do ideal, o pouco que existe agora, estabelecido e aplicado pelo regime, é o que permite o experimento da liberdade e proteção que atualmente, por enquanto, desfrutamos.

Diante de tantas exigências apresentadas quanto aos deveres de um cristão perante as autoridades humanas, haveria alguma ressalva, limite ou impedimento para a prática da lealdade às organizações terrestres? Logicamente, a resposta deve ser sim, pois Pedro, que anteriormente havia orientado a sermos submissos às instituições, é o mesmo que afirma: “antes importa obedecer a Deus do que aos homens. ” (At 4:18; 5:29). Quando Jesus afirmou que devemos “dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22:21), estava, implicitamente, afirmando que nem tudo é de César[4]. Mas o que não é de César? Tudo o que, promovido pelos Césares modernos, interfere em nossa fidelidade a Deus deve ser considerado uma violação não do cidadão, mas do governante. Esta seria uma das poucas razões que justificariam a nossa infidelidade ao sistema atual.

A síntese do que não é de César é simples: o cristão deve harmonizar a sua vida aos moldes da ética e leis de um governo terrestre quando este manifesta sua posição adequada - abaixo de Deus. Não obstante, temos a liberdade de restringir ou de limitar a nossa lealdade social e civil ao sistema humano quando este assume uma posição no lugar ou acima de Deus impondo ordens ou demarcações em nossa subordinação à vontade de Deus. É fato que os governantes são reconhecidos como ministros ou servos do Altíssimo (Rm 13:4), mas deixam de ser reconhecidos quando usam o poder para oprimir e diluir a integridade cristã ou para impedir nossa liberdade de sermos fieis aos clamores de Deus. As leis dos homens devem ser respeitadas [o que é de César] desde que elas não anulem a autoridade da lei de Deus [o que é de Deus][5].

É importante considerar que quando a lei de Deus ou os valores da fé cristã não são afetados pela legislação terrena nenhum ato de insubmissão é justificável. Abaixo de Deus, os governantes e as autoridades possuem amplo arbítrio. Mesmo em casos em que há abuso de autoridade e imposição de regimes contra os valores cristãos, nenhuma revolução, golpe, motim, rebelião inflamação, especialmente motivada por partidarismo ou preconceito antagônico político, deve ser absorvido e exercido pelo cristão. Todavia, não respeitar as leis humanas para sustentar a fidelidade a Deus não significa ter permissão para participar de protestos, golpes, tumultos políticos e insurreições. Como já comentado, Paulo e Pedro orientaram a igreja a permanecer em paz com o Estado mesmo em um contexto desfavorável (Rm 13:1-7; I Pe 2:13-14; Tt 3:1[6]). O exemplo máximo de Jesus a este respeito valida a maneira como devemos agir em um mundo de pecado e de embaraçosa política: "O governo sob que Jesus viveu era corrupto e opressivo; clamavam de todo lado os abusos — extorsões, intolerância e abusiva crueldade. Não obstante, o Salvador não tentou nenhuma reforma civil. Não atacou nenhum abuso nacional, nem condenou os inimigos da nação. Não interferiu com a autoridade nem com a administração dos que se achavam no poder. Aquele que foi o nosso exemplo, conservou-Se afastado dos governos terrestres. Não porque fosse indiferente às misérias do homem, mas porque o remédio não residia em medidas meramente humanas e externas. Para ser eficiente, a cura deve atingir o próprio homem, individualmente, e regenerar o coração.”[7]

Notoriamente, o cristão pode contribuir para o melhoramento político de seu país, estado ou município, todavia isento de comportamento que traga mais infortúnio e opróbio à igreja. Neste caso, como vivemos em uma sociedade que oferta um grau elevado de liberdade, embora dificultoso, podemos influenciar a cultura contemporânea com os valores cristãos. É exatamente isso que afirma Charles Colson, conferencista e assistente presidencial de Richard Nixon na década de 70, ao escrever que “o chamado para redimir a cultura popular é certamente um dos desafios mais difíceis para a fé cristã hoje.”[8] Segundo Nancy Pearcey, membro-associado do Discovery Institute’s Center for Sciense and Culture, “o melhor modo de repelir uma cosmovisão ruim é oferecendo uma boa, e os cristãos devem deixar de criticar a cultura e passar a criar cultura.”[9] Nancy acredita que Deus nos deu a tarefa de moldar a cultura, as leis, a arte, a ciência, a ética e, inclusive, a política e os governos, de modo a construir valores cristãos, e, inclusive, princípios governamentais.

Outra forma também extraordinária de revolucionar a política e os nossos governantes é através da oração e confiança em Deus. Um relato, dentre muitos, que reforça este pensamento é a experiência de batalha espiritual, oração e jejum vivenciado por Daniel. Ele não saiu para as ruas, não participou de grupos de revolta, mas fez a única coisa capaz de mudar a imposição de um rei contra o povo de Deus naquela ocasião. “Enquanto orava por mais esclarecimento a respeito dos temas que ainda não tinham sido explicados em visões anteriores, sem dúvida, o profeta passou o outro período de intercessão intensa (Dn 9:3-19) para que a obra do adversário fosse detida e as promessas divinas de restauração pudessem se cumprir em favor do povo escolhido”[10]. Suas orações, em consonância com a vontade e sabedoria divina, mudaram o rumo de uma legislação. A mesma oração capaz de salvar uma vida é a mesma que, em harmonia com a sabedoria do Onisciente, pode salvar uma nação. O problema é que para alguns é mais fácil e empolgante se envolver em disputas e motins do que passar dias orando e jejuando, exercendo confiança em que Deus intervirá pelo melhor. Este é o princípio. Na descrição de Paulo, é desta maneira que somos orientados: "Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ação de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade" (ITm 2.1-2).

Por fim, para exercer nossa cidadania a favor da ordem, submissão e ética aos reclamos da legislação humana, uma das melhores maneiras de assim proceder é fazendo bom uso de nossa capacidade de escolher quem nos governará. Mas o cristão não deve escolher um partido ou candidato apenas porque lutam por causas sociais, porque não há outro melhor, porque são amigos da família ou porque lhe fizeram algum favor. Levando em consideração o princípio de “fazer tudo para a glória de Deus” (I Co 10:31), embora a igreja sabiamente seja apolítica (Jo 18:36), temos uma responsabilidade individual de exercer ética e bom senso para ajuizar nossa escolha com base no que se aproxima o máximo possível dos valores que protegem a nossa fé e os princípios bíblico-cristãos. O Cristão deve conhecer bem os valores dos candidatos, seus feitos, suas propostas, sua conduta e o seu contexto de vida, mas em consonância com os valores, nada deve ser mais solenemente importante e atentamente observado, do que as propostas que diluem ou fortalecem a liberdade religiosa e os mandamentos de Deus[11]. Pois os cristãos que colocam no poder pessoas que pisam estes dois princípios trarão sobre si as responsabilidades dos pecados que eles cometem.[12]     


Gilberto Theiss - Graduado em Filosofia e Teologia, Mestrando em Interpretação Bíblica. Pós-Graduado em Ensino de Filosofia, Ciência da Religião, História e Antropologia. Atualmente é pastor no Estado do Ceará.


[1] FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E.; BROWN, RAYMOND E. (Ed.). Novo comentario biblico São Jeronimo: Novo Testamento e artigos sistematicos.  São Paulo - SP: Paulus, 2011, p.118, 119.
[2] CARSON, D. A. e tal; COMENTÁRIO bíblico: Vida Nova. D. A. Carson et al; Tradução de Carlos E. S. Lopes. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 2063.
[3] BRUCE, E. F. (Ed.). Comentário bíblico NVI: antigo e novo testamento. São Paulo: Vida, 2009, p. 2078, 2079.
[4] DORNELES, Vanderlei (Ed.). Comentario biblico Adventista do Sétimo Dia: Mateus a João. Tatuí - SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013. v. 5, p 513.
[5]  Ibdem
[6] (ver Ref. 1, 2 e 3)
[7] WHITE, Ellen G. O desejado de todas as nações. 22. ed. Tatuí - SP: Casa Publicadora Brasileira, 2004,  509.
[8] COLSON, Charles; PEARCEY, Nancy. O cristão na cultura de hoje: desenvolvendo uma visão de mundo autenticamente cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p. 284.
[9] PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio de Janeiro: CPAD, 2006, p.63.
[10] NICHOL, Francis D.; DORNELES, Vanderlei (Ed.). Comentario biblico Adventista do Sétimo Dia: Isaías a Malaquias. Tatuí - SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013. v. 4. p. 944.
[11] WHITE, Ellen G. Obreiros evangelicos: instrucoes para todos os que sao cooperadores de Deus. 5. ed. Tatuí - SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011, p. 391-396).
[12] ________. Obreiros evangelicos: instrucoes para todos os que sao cooperadores de Deus. 5. ed. Tatuí - SP: Casa Publicadora Brasileira, 2011, p. 391-392.