TRADIÇÕES JUDAICAS E O NOVO TESTAMENTO

Visto que o Novo Testamento foi escrito por Judeus, em contexto judaico, não é surpresa que tradições judaicas tenham exercido um importante papel na sua tessitura, tanto conceitual quanto prática. E, ao falarmos das tradições judaicas, não estamos nos referindo particularmente ao chamado Antigo Testamento ou ao Tanakh judaico, mas a todo o corpo de sabedoria judaica, expressos e codificados na literatura talmúdica e midráshica. 
O grau de influência e inter-relacionamento entre a literatura neotestamentária e o corpus  da tradição judaica é motivo de discussão.
 É o Novo Testamento tão semelhante ao corpus judaico que com ele se confunde a ponto de ser apenas mais um exemplo da multiplicidade da mente criativa judaica? Ou é ele de tal maneira dessemelhante que não pode ser visto exceto como literatura judaica circunstancial e de natureza polêmica?

Por outro lado, no que tange às comunidades cristãs primitivas é correto se pensar que elas são tão únicas que devam ser vistas como uma ruptura radical com o seu milieu? (Varner, Fischer et al., 2003) Ou devem ser identificadas com seu contexto e cultura até o ponto em que não possam ser delas diferenciadas, sendo meramente expressões destas?

Todas estas questões são alvo de imenso debate acadêmico[1] e este debate está longe de terminar e atingir um consenso. O estado atual da pesquisa demonstra, entretanto, que existe um interesse em redescobrir o contexto filosófico, teológico e judaico do Cristianismo Primitivo (Davies e White, 1990; Donaldson, 2010).

O presente artigo analisa a maneira pela qual o Novo Testamento -  e a comunidade cristã nele representada - interagiu com as tradições judaicas existentes em seus dias. Para tanto, é preciso de início definir algumas questões metodológicas. A primeira diz respeito às fontes da tradição com as quais lidaremos, ou seja, o Talmud e a Midrash.

O Talmud Babilônico contém grande parte das tradições do período Tanaítico (período dos Tannaim ou sábios do segundo Templo). Em sua forma final, ele data do século 4 E.C.(Abrahams, 1977), mas suas tradições remontam até o 3º  século A.E.C (Vidas, 2009) . Além do Talmud babilônico, existem também o Talmud de Jerusalém, composto aproximadamente no mesmo período, mas na Palestina, em Jerusalém(Neusner, 2008). Por fim, temos ainda os midrashim, coleções contendo as interpretações exegéticas e homiléticas da Torah (Katz e Schwartz, 2002).

Dada a multiplicidade das fontes, e, sobretudo, sua dispersão no tempo, a primeira pergunta a ser feita é se as tradições judaicas antedatam, ou são ao menos contemporâneas ao Novo Testamento e a igreja Cristã(Remaud, 2012). A resposta a esta pergunta não é simples. Em sua forma escrita, essas tradições datam de meados do século quatro da era comum, chegando, em alguns casos, até os séculos VIII e IX(Vidas, 2009). Entretanto, as fontes literárias não são a origem da tradição, que deve haver existido em forma oral, por muito tempo antes de haver sido codificada (Neusner, 1994). De fato, trechos das tradições são encontrados circunstancialmente em citações de literatura independente ou não talmúdica, demonstrando sua antiguidade (Remaud, 2012).

 Ao leitor ocidental não judeu e cristão do século XXI a multidão de tradições judaicas pode ser considerada de duas maneiras. Primeiro, podem ser vistas como meras lendas judaicas, destituídas de qualquer fundamento e que representam pensamentos místicos ou deslindes homiléticos por parte dos rabinos. E, segundo, podem – de fato são – ser  consideradas como afastamento voluntário ou superposição religiosa sobre o texto da Bíblia Hebraica. Nenhuma das visões, entretanto, faz justiça à beleza e profundidade das tradições, quando estas são analisadas em seu contexto e dentro de seu propósito.

As tradições judaicas são, nos dizeres de Michel Ramaud (2012), a interpretação judaica do texto da Bíblia Hebraica. Noutras palavras, elas não surgem do nada, mas se fundamentam no texto da Torah (Cherry, 2007). Sem sombra de dúvidas, elas vão além de uma leitura literal e simples do texto, e, não se pode negar, em muitos lugares representam uma leitura quase hiperbólica deste (Collins, 1998). De qualquer forma, entretanto, elas existem porque o texto existe.  E ele existe não apenas no seu conteúdo, mas em sua forma. Isto quer dizer que o intérprete judeu da época nas quais estas tradições surgem, analisa inclusive o formato em que o texto está escrito, os tipos de letras utilizados, seus desenhos, inclinações e interações (Evans, 2004). Para ele, cada um destes elementos possui significado e ajudam a compreender pontos obscuros do conteúdo do texto.

 Modelos de Citação

É na relação com o texto da Bíblia Hebraica que encontramos o elemento de tensão ou de aproximação da comunidade cristã primitiva com as tradições judaicas. De forma geral, veremos que as tradições mencionadas no Novo Testamento, são aceitas ou não, baseado na proximidade ou afastamento do texto base da fé judaica, a Bíblia Hebraica.

Existem três modelos básicos de uso das tradições judaicas, no âmbito da comunidade cristã primitiva.
O primeiro é o modelo de aceitação. Neste, as tradições são vistas de forma positivas e utilizadas de forma a suportar uma afirmação do Novo Testamento, principalmente no que respeita a relação de Cristo com cumprimento das expectativas messiânicas. Em outras palavras, o modelo positivo se subdivide em dois submodelos. No primeiro submodelo, o uso é indireto e representa apenas a menção positiva de uma determinada tradição que encontra paralelo nos eventos da Igreja primitiva ou na vida de Cristo. No segundo, as tradições são utilizadas para dar suporte à proclamação messiânica do próprio Cristo e acerca de Cristo pelos discípulos e apóstolos.

O segundo modelo é de rejeição. É o modelo mais básico da leitura tradicional do Novo Testamento. De fato, mesmo um autor como James Dunn, com sua aproximação à nova perspectiva paulina, afirma que a atitude de confronto e rejeição das tradições é o modelo mais comum no ministério de Cristo. Também aqui, podemos encontrar formas distintas de relacionamento. Por um lado, encontramos a rejeição explícita e o confronto direto do Sermão do Monte e da discussão sobre o lavar as mãos, dentre outros. Por outro, encontramos Jesus falando sobre a não aceitação da hipocrisia farisaica, afirmando que eles tinham  razão no que diziam, mas não faziam o que diziam. Nos escritos apostólicos, a rejeição às tradições é vista principalmente nas epístolas paulinas.

Há, por fim, o uso neutro, no qual a tradição é apenas notada, citada ou mencionada, sem, contudo, haver indicativos positivos ou negativos. A tradição não é vista como um empecilho à fé cristã, nem é trazida em seu auxílio, mas é utilizada no contexto narrativo, como uma explicação de alguma atitude judaica ou de Cristo, ou dos discípulos.

Nas próximas seções, alguns exemplos destes usos serão apresentados e discutidos.

 Uso positivo

Como mencionado,  o uso positivo das tradições judaicas no Novo Testamento se subdivide em dois submodelos. O primeiro é o uso circunstancial, no qual a citação ocorre no contexto vivencial do Novo Testamento e da Igreja primitiva. Não há interesse específico por parte do autor neotestamentário, exceto mencionar a tradição no contexto do acontecimento da vida de Cristo ou da Igreja. Esta menção, ajuda a explicar o que foi recentemente mencionado ou a preparar o pano de fundo do que será narrado em seguida. Não há uma introdução específica da menção, sendo ela incluída no fluxo narrativo.

Um exemplo do uso circunstancial é o uso que Cristo faz da expressão ligar ou desligar, no capítulo 18 de Mateus. Jesus não cita a tradição, mas a utiliza de forma a explicar a autoridade celestial da Igreja. Ele toma a tradição judaica, segundo a qual, ligar e desligar significavam permitir e proibir respectivamente, sendo estas prerrogativas do Sinédrio, e as aplica para a Igreja, no contexto da disciplina eclesiástica.

Outro exemplo é a citação da Ressurreição de Moisés, em Judas 9. O texto é incluído como recurso teológico e narrativo, no escopo da humildade. A tradição é citada não para comprovar a ressurreição de Moisés, mas para exemplificar a humildade até mesmo dos Poderes Superiores, no caso Miguel. O relato de Judas não se baseia em nenhum texto da Bíblia Hebraica, mas na tradição que foi preservada de forma fragmentária, no petirat Moshê e no Asumptio Moses. Nenhuma das fontes, entretanto, registra os acontecimentos narrados em Judas 9 e podemos apenas supor, com maior ou menor grau de certeza, que elas o continham. O fato, entretanto, é que havia uma tradição consolidada que contava com maiores detalhes os eventos circundantes à morte de Moisés e Judas a utiliza.

Ainda outro exemplo está contido na expressão “jornada de um sábado” encontrada em Atos 1:12. A menção aqui não é a negativa, nem exegética, mas circunstancial e serve apenas para estabelecer a distância percorrida pelos discípulos no retorno do monte das Oliveiras. O evento nem mesmo se deu em um Sábado, ou pelo menos nada é dito quanto a isto (Barrett, 2004). A tradição estabeleceu esta distância baseando-se na medição entre o Tabernáculo no deserto e a última tenda no acampamento (Números 35:5) ou na distância que Josué estabeleceu deveria ser guardada do povo para a Arca da Aliança e os Levitas ao cruzarem o Jordão (Js. 3:4) (Cf. T. B.  ‘Erubin 4:3) (Nichol, 1978).

O uso circunstancial não é comum na literatura Paulina, uma vez que este corpo literário é composto de poucas narrativas. Há, entretanto, exemplos como o de 2. Timóteo 3:8, no qual ele nomeia os dois sacerdotes egípcios que resistiram a Moisés. Êxodo 7:8ss não apresenta nenhum nome para os sacerdotes, e Paulo seguiu aqui a tradição judaica. A primeira menção que conhecemos dos nomes de Jannes está no Documento de Damasco linhas 17-19 (Davies, 1982), no qual se diz que eles foram levantados por Belial para se opor a Moisés e Araão, que haviam sido levantados pelo Príncipe das Luzes. Jambres não é mencionado, mas chamado apenas de “seu irmão”. O Targum Pseudo-Jonathan de Êxodo 7:11 traz estes nomes, que se tornaram comuns na tradição judaica(Kaufman, 2005). De acordo com algumas versões da tradição, eles eram os filhos de Balaão, que haviam tomado a capital da Etiópia e que resistiram Moisés ali, quando ele fugiu do Egito e se uniu  ao exército Etíope (T. B. Baba Bathra 55a, cf. Moses  (1906))

A segunda maneira pela qual as tradições judaicas são utilizadas positivamente na Igreja Cristã Primitiva e no Novo Testamento é como um dispositivo exegético. Neste modelo de uso, os elementos da tradição são utilizados para dar validade a um aspecto interpretativo do Novo Testamento ou para demonstrar como Cristo cumpre um item específico das profecias.
Um exemplo deste uso está no tempo que Jesus deveria passar na sepultura. Os evangelhos afirmam, vez após vez, que O Senhor ressuscitaria ao “terceiro dia” (Mat. 16:21), após “três dias” (João 2:19), segundo as palavras dos profetas (Lucas 18:31). Ora, não há um texto bíblico específico que afirme que o Messias deveria ressuscitar ao final de três dias. Mas há indicativos na tradição judaica que podem ser identificados como a fonte desta expectativa, da qual Jesus se apropria.

O Midrash Rabbah de Gênesis 56 contém uma referência extensa a um período de três dias:

“No terceiro dia”, etc. “Ao fim de dois dias nos fará reviver; no terceiro dia nos reerguerá e viveremos em sua presença” (Os. 6,2). 0 terceiro dia das tribos: “No terceiro dia José lhes disse” (Gn 42,18); no terceiro dia do dom da Torá: Ao amanhecer do terceiro dia...” (Ex 19,16); no terceiro dia dos espiões: “Escondei-vos lá durante três dias” (Js 2,16); no terceiro dia de Jonas: “Jonas permaneceu nas entranhas do peixe três dias e três noites” (Jn 2,1); o terceiro dia daqueles que voltam do exílio: “e ali acampamos três dias” (Esd 8,15); no terceiro dia da ressurreição dos mortos: “Ao fim de dois dias nos fará reviver; no terceiro dia nos reerguerá e viveremos em sua presença”(Os 6,2); o terceiro dia de Ester: “Ao fim de três dias, Ester pôs suas roupas reais” (Est 5,1) e em razão de quê? Nossos mestres dizem: em razão do terceiro dia da outorga da Torá; e Rabi Levi disse: em virtude do terceiro dia do nosso pai Abraão: “O terceiro dia”...

O texto acima mostra que existia um tradição muito bem definida de eventos especiais acontecendo ao final de três dias ou ao terceiro dia.  O midrash cita inclusive a expectativa da ressurreição e erguimento do povo de Israel ao final deste período, porque da leitura de Oséias 6:2, os rabinos obtiveram a certeza da ressurreição. É bem verdade que o texto do Midrash não cita especificamente o Messias. Isto não é necessário, entretanto. O fato é que a tradição estabeleceu firmemente que o período de “aflição do justo” não é maior do que três dias (bereshit rabbah, 96), e que, ao terceiro dia, a ressurreição dos mortos era esperada. Jesus utiliza-Se desta tradição e a valida ao apresentar nos Evangelhos que Sua Ressurreição deveria acontecer no terceiro dia, segundo os “profetas”. Ele não se referia a qualquer profecia em particular, mas a este conjunto de profecias reunidas pela tradição judaica, através da leitura dos profetas, iniciando com a história do Sacrifício de Isaac, contada em Gênesis 22.

Paulo retoma esta mesma tradição, em sua primeira carta aos Coríntios, capítulo 15. Ele argumenta que Cristo ressuscitou ao terceiro dia, “segundo as Escrituras”. Podemos tomar este verso como uma referência à história de Cristo, narrada nos Evangelhos ou como uma referência às profecias que falavam da ressurreição do Messias ao terceiro dia.  Dificilmente, dada a data da primeira carta aos Coríntios, poderia ser uma referência aos evangelhos, que teriam sido escritos no mesmo período ou posteriormente. Além disto, a referência no verso 3, às Escrituras não deve ser vista com uma referência aos evangelhos, mas às profecias da morte do Messias. Em sendo assim, Paulo parece ler Oséias 6:2 através da lente da tradição encontrada no midrash.
Outro exemplo de uso positivo da tradição em Paulo pode ser encontrada em 1. Tessalonicenses 2:16. A menção à Ira divina é uma citação verbatim ad litteram  do Testamento de Levi 6:11. Lamp (2003) argumentou brilhantemente que Paulo aqui se valeu da tradição encontrada no Testamento de Levi, como um marco teológico e dispositivo exegético através do qual ele enxergava as relações entre os perseguidos e perseguidores.

 Uso negativo

O segundo uso da tradição nos Novo Testamento é o negativo, de contradição ou tensão. De fato, este é o uso mais comumente encontrado nos escritos neotestamentários. As tradições judaicas são citadas diretamente e postas em direto contraste com os ensinos da comunidade cristã ou do próprio Jesus.
Talvez o exemplo mais emblemático deste uso esteja no Sermão da Montanha, na versão Mateana. Ali, os ditos rabínicos e a intepretação halakikha da lei são confrontados de forma direta e postos sob uma luz negativa. É verdade que, em nossas traduções, esta polêmica desaparece e Cristo é visto como que pondo de lado a própria Torah, superpondo Sua própria Lei ao que havia sido dito aos antigos judeus, ao sopé do Sinai.

Esta visão, entretanto, precisa ser posta de lado, uma vez que cria problemas indissolúveis: como é possível que Cristo no capítulo 5:17 de Mateus diga que não veio abolir a Lei, e em seguida declare seus princípios inválidos?
Uma resposta para esta contradição aparente está na compreensão de que Jesus estava lidando no sermão do monte não apenas com a Bíblia Hebraica, mas também e principalmente com elementos da tradição judaica.

É a partir do verso 21 e até o verso 48 do capítulo 5 de Mateus, que Jesus apresenta seu discurso de contrastes com a tradição dos anciões. O conteúdo do discurso é marcado pela contraposição da posição do ρχαοις com Sua própria posição sobre os Mandamentos. Jesus estabelece o contraste ao utilizar já a forma rabínica de se referir à transmissão da tradição. Ele inicia cinco de suas seis antíteses (vv. 21, 27, 33, 38, 43), com o termo κοσατε, “Ouvistes”.  A única exceção é a quarta antítese, no verso 31, na qual o verbo κοσατε deve ser subentendido (Hagner, 2002). Este termo é uma clara menção à forma שמעו encontrada na literatura rabínica como uma referência à tradição oral (Sanh. 11:2;T.p. Terum. 10, 47) (Strack e Billerbeck, 1922).

Estabelecida a procedência rabínica da proposição, Cristo apresenta Sua própria intepretação da Lei, através da expressão γ δ λγω. O próprio uso desta forma, apresenta um ponto de contraste, uma vez que o costume rabínico é sempre se referir a uma autoridade além da sua, para substanciar a opinião emitida. É o famoso dito “Rabi X disse em nome de Rabi Y” (Exemplos em Strack e Billerbeck (1922)). Por contraste, Cristo não apresenta outra autoridade que não  a Sua própria como fonte de sua interpretação.

Outro exemplo dos Evangelhos é a discussão quanto ao lavar as mãos antes de comer, em Marcos 7:1. Os escribas e fariseus acusaram os discípulos de quebrarem a tradição dos anciãos ao comerem sem lavar as mãos. De fato, o Talmud Yerushalaim, Tr. Shabbat 3.4, afirma que:
Hillel e Shammai decretaram על טהרות ידים  “sobre a purificação das mãos””; R. Jose bem R. Bom, em nome de R. Levi, diz “assim era a tradição antes, mas eles a esqueceram. Estes dois se levantaram e concordaram com as mentes dos anteriores.

Jesus chama esta tradição de tradição de homens, citando Isaías 29:13,  e se coloca nitidamente contra ela. Ele não tenta justificar Seus discípulos, mas afirma que a tradição é inválida.
Em Gálatas 1:14, Paulo fala de si mesmo como sendo extremamente zeloso da “tradição de meus pais”, mas que ao passar para a Graça, não consultou “carne nem sangue” (v. 15). Noutras palavras, ele, após a experiência no caminho de Damasco, passa a entender que a tradição dos pais não eram condizentes com a sua nova vida. Ele considera estas tradições, ou formas delas, perigosas para as comunidades que ele havia estabelecido e as adverte contra os mestres falsos que se apresentavam ensinando-as, tanto em Gálatas, quando em Colossenses e Efésios. A leitura tradicional destas cartas estabelece uma discussão de Paulo com a Torah, sem perceber que sua insatisfação não estava nos mandamentos, leis ou ordenanças da Lei (entendida aqui de forma integral, tanto moral quanto cerimonial), mas com as tradições em torno da Lei. E em que consistiam estas tradições? Horbury (2010) demonstrou que eram os ensinos Farisáicos, chamados de paradosis, que consistiam das intepretações que Paulo havia aprendido enquanto era ele mesmo um Fariseu.

Uso Neutro

O último uso da tradição judaica no Novo Testamento é  aquele que não a utiliza nem de forma positiva e nem de maneira polêmica, mas apenas a cita no contexto da própria tradição. Ela não faz parte da cosmovisão cristã primitiva, mas não interfere com seus ensinos, sua compreensão da Bíblia Hebraica ou do Messias. Ela não direciona sua intepretação do Tanakh, porque não é interpretativa.
De certa forma, ela está relacionada com o uso circunstancial, pois está inserida em um contexto narrativo. Contrário ao uso circunstancial, o uso neutro, entretanto é apenas uma informação acessória, que não direciona o fluxo narrativo, nem o interrompe.
Um exemplo claro é encontrado nos Evangelhos, em João 5:2, na narrativa da cura do coxo no tanque de Betesda. A menção à tradição do anjo que movia a água, não direciona a narrativa, nem causa o milagre. Não há tampouco, uma discussão teológica sobre o movimento das águas. Apenas se diz que criam que aquilo era verdade.

Conclusão

Examinamos de forma resumida as três principais formas como o Novo Testamento, mormente Jesus e Paulo interagiram com a tradição judaica vigente em seus dias e percebemos duas importantes características:
Eles interagiram com a tradição, respeitando-a, rejeitando-a e transformando-a. De forma alguma, eles entenderam estas tradições como erradas em si mesmas, sem demonstrar as bases pelas quais o faziam. 
O segundo aspecto é exatamente o fator utilizado para determinar se um tradição era usável ou não: A Bíblia Hebraica. As tradições não podiam “invalidar” as leis e mandamentos que haviam sido dados no Sinai.  Em Paulo, seu encontro com Cristo e a  compreensão de Jesus como não apenas o Messias judaico, mas como Deus em carne, era o fator que determinava a aceitação ou rejeição de uma determinada tradição.

Sérgio Monteiro - Bacharel em Teologia. Pós-Graduado em Teologia. Mestre em Teologia Bíblica e Doutorando em Línguas Semíticas.

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Referências

ABRAHAMS, I. Jews, Judaism, and the classical world : studies in Jewish history in the times of the Second Temple and Talmud.  Jerusalem: The Magnes Press, 1977.


























[1] Bons exemplos em Johnson e Feinberg (1988)