O missionário no contexto das reformas religiosas

O missionário no contexto das reformas religiosas

Resenhado por Larissa R. S. Theiss [1]

Referência Bibliográfica: PROSPERI, Adriano. “O missionário”. In: VILLARI, Rosário. O homem barroco. Lisboa: Editorial Presença, 1995, pp. 143-171.

No capítulo VII do livro intitulado “O homem barroco”, o historiador Adriano Prosperi aborda determinadas reformulações ocorridas no cristianismo, enfaticamente no catolicismo, durante os séculos XVI e XVII, tendo como foco principal a figura do missionário.
O autor inicia sua análise citando a carta de 15 de Janeiro de 1622 onde é anunciada a criação da Congregação “de Propaganda Fide”. No referido documento, fica claro que existem duas maneiras do ofício católico zelar pela fé: uma que se refere aos fiéis, para a qual a Santa Inquisição foi instituída; e outra que se refere aos infiéis, para os quais existem as missões. Em meados do século XVI, o uso da violência como instrumento de conversão era defendido como aplicável para todos os povos, sem discriminação. No entanto, no século XVII, transformações ocorridas no cristianismo lançaram dúvidas e incertezas onde antes predominava a certeza sobre a verdade da época da Reforma. Os seres humanos se tornaram mais difíceis de compreender e de guiar. Dessa forma, a tarefa do missionário e a escolha da persuasão por meios não violentos acabam ganhando destaque.
Relacionado à tarefa do missionário de falar para pessoas de terras distantes, estava o relato das missões. Os mesmos homens que se dedicavam à pregação também se dedicavam a escrever sobre os acontecimentos das missões. E ligado a esses textos surgiu um grande trabalho editorial que visava exatamente à propaganda. Os textos serviam de fuga, mas também de incentivo para os que na Europa ficavam. Prosperi salienta a transformação ocorrida nestes textos, que acabam deixando de falar sobre martírio em nome da fé para exaltar a essência missionária onde a conquista não é feita por meios violentos e passa pelo estabelecimento de uma relação de ensino, de demonstrações de superioridade de um conhecimento sobre o outro. Com o passar do tempo, os textos missionários passam a indicar cada vez mais a escolha da persuasão e da instrução ao invés do uso da força. No século XVI, a questão do uso da força como forma de espalhar a fé, e a discussão em torno de coagir ou não os povos fora da Europa a aceitarem o cristianismo se tornou uma grande polêmica.
Não há dúvida que o uso da força para a conversão era o instrumento na conquista da América. A questão era problemática quando se falava das missões em países não dominados militarmente pelos europeus, como Índia, Japão e China. Fazendo uso da discórdia existente entre os padres responsáveis pelas missões japonesas acerca de como se devia proceder, o autor do texto explica a importância da questão das cerimônias, ou seja, do comportamento social, para a tática da persuasão e da simulação, defendidas pelo padre Alessandro Valignano.
Prosperi indica que a criação de normas de comportamento era um aspecto muito importante na cultura italiana da época de Valignano e que essas regras tinham a ver com os deveres do indivíduo para com a sociedade, quem não conseguisse pô-las em prática não podia ser considerado membro da mesma. Para o autor, no âmbito religioso, o reflexo dessa elaboração de regras de comportamento pode ser visto na polêmica da Reforma e no missionário.
As discussões giravam em torno da necessidade de adaptar-se a quem tinha concepções religiosas diferentes, e que tipo de simulações eram necessárias para conquistá-los. Valignano defendia a ideia de que era necessário ganhar o respeito e autoridade por parte dos japoneses e que para isso, os missionários deveriam se adaptar a um papel social mais condizente com os religiosos europeus. Os ritos do chá eram mais importantes do que os ritos sagrados do cristianismo, a descortesia era o maior pecado. As diferenças sociais deviam ser bem marcadas, o que implicava agir de um modo que não estava de acordo com as regras cristãs.
Obviamente a argumentação era de que tudo não passava de fingimento, uma simulação para conseguir conquistar o povo japonês para o catolicismo. No entanto, a simulação fora tão bem feita que os missionários já quase não eram reconhecidos por seus próprios superiores e seus comportamentos geravam escândalo. As preocupações dos superiores eram grandes, e no entanto, a adaptação aos costumes e padrões culturais continuava a ser a única opção em lugares onde a Europa não se sobressaía culturalmente ou não dominava militarmente.
O problema se intensificou com a “questão dos ritos”, que envolvia a opção dos jesuítas em tributar honrarias aos defuntos com a argumentação de que eram ritos “civis” e não religiosos. O Santo Ofício e o papa optaram pela condenação das escolhas dos jesuítas e o resultado dessa disputa em torno da criação de regras de comportamento foi “a vitória final da intransigência inquisitorial sobre a abertura missionária, reduzindo-se a Inquisição a instrumento nas lutas internas entre as forças organizadas para salvaguarda da cidadela da ortodoxia.” (PROSPERI, 1995, p. 161)
Adriano Prosperi aponta também para o fato de que em meados do século XVI se tornou comum fazer referências às “Índias do lado de cá” como uma maneira de chamar o trabalho missionário realizado em territórios de países católicos. O envio de missionários para esses campos fez-se necessário devido às duras críticas realizadas ao clero, que se intensificaram por causa da Reforma e também pelo medo de que as ideias reformistas se estabelecessem firmemente na Itália. Por essa ocasião, na verdade a “missio” era uma tarefa delegada aos religiosos por suas autoridades maiores. Tarefa essa que muitas vezes criava oposição entre os poderes religiosos central e local, representados respectivamente pelo missionário e os padres. Além de problemas com o clero local, os missionários também podiam enfrentar situações como a total inexistência de representantes religiosos locais. Também se desenvolveu uma literatura de viagens ligada a essas missões e é possível observar elementos análogos aos da literatura das missões fora da Europa. A fúria da natureza e dos homens, o desejo de martírio, aparições sobrenaturais de Maria, anjos e demônios são algumas características comuns às literaturas de viagens.
Além disso, nota-se a dualidade com que os missionários retratam os lugares por onde passam e as pessoas com quem mantêm contato. A terra é sempre um paraíso terrestre, mas cheio de miséria e agruras. Os povos, cheios de superstições e sem refinamento, são selvagens bem dispostos para seguir o evangelho. É importante frisar que nesta época a estratégia de conquista católica já havia mudado. O uso da força não era totalmente descartado, mas já se sabia que algo mais era necessário para que a fé imposta criasse raízes.
Nesse contexto, entram a figura do missionário e os métodos desenvolvidos para cumprir essa tarefa. Pelo fato dos territórios estarem unidos pela organização das ordens religiosas, pelos mesmos homens e as mesmas ideias, as ferramentas usadas para as “Índias de lá” acabaram sendo usadas também nas “Índias de cá”.

As linhas de organização dessa experiência foram sobretudo duas: as artes da <> e da simulação elaboradas para as culturas <> e para os países não dominados militarmente por príncipes cristãos – Japão e China – foram reservadas para as classes dominantes, e, em especial, para os soberanos dos estados europeus não católicos. As técnicas didácticas destinadas aos <> da América foram utilizadas nas missões internas que invadiram os campos dos países católicos. (PROSPERI, 1995, p. 165)

A dominação e direção das consciências dos príncipes são apontadas por Prosperi como a adaptação dos métodos usados no Japão e na China para países europeus. Dominando os príncipes, podia-se governar através deles e assim espalhar o catolicismo. Entre os príncipes não católicos, homens atuavam para aproximá-los do catolicismo. Entre os que já professavam a fé, tentava-se institucionalizar o domínio já existente.
A educação também foi uma ferramenta usada para expandir a fé católica entre a elite. Seminários foram instituídos, filhos de nobres eram mandados para estudar com príncipes católicos, bolsas de estudos e promessas de boa colocação profissional eram oferecidas para jovens burgueses. A intenção era usar a ciência e a formação das elites para fazer o catolicismo enraizar-se.
Conquistar os camponeses para o catolicismo era outra das atividades missionárias e essa requereria uma estratégia eficaz. Existiam relatos de campos europeus onde os camponeses não sabiam nem quantos eram os deuses cristãos. Essa situação dramática acabou transformando a “missio” em uma instituição. A “missão” deixa de ser apenas uma tarefa e passa a ser um lugar para o combate da ignorância.
As estratégias para essa luta eram basicamente duas: comoção seguida de penitência, e o ensinamento dos preceitos do catecismo. Para o ensino do catecismo a imprensa foi de grande ajuda: folhetos que misturavam instruções de boas maneiras e ensinamentos religiosos eram impressos. No entanto, por seus aspectos sociais e comunitários, o foco principal estava nas penitências.
 As questões da penitência e do controle dos sentimentos de culpa estavam no centro do cristianismo desde a época da Reforma. Técnicas ligadas à oratória, práticas teatrais e exercícios espirituais foram criadas para estimular e controlar essas emoções. A eficácia dessas técnicas foi comprovada com a sua aplicação nas missões entre os fiéis dos campos.
Prosperi descreve como se desenvolveu então um sistema teatral complexo, que tinha o início marcado pela chegada inesperada e ás vezes escondida do missionário. As igrejas se tornaram espaços teatrais com os membros da comunidade se humilhando e se penitenciando. Os pregadores criavam tensão e drama propositalmente, e a penitência era a anulação das ofensas cometidas contra Deus, o fim da tensão. Os recursos teatrais, encenações, diálogos ensaiados eram inúmeros e a reputação do pregador advinha da eficácia deles.
Os pregadores também se utilizavam da estratégia de substituição para que as pessoas renunciassem aos maus hábitos: ofereciam indulgências em troca de objetos ligados aos vícios. A estratégia já era utilizada com os índios americanos e a partir de então, uma infinidade de rosários, água benta e objetos “santos” se alastrou por entre o povo católico.
Embora os jesuítas fossem os mais solicitados a usar o teatro como ferramenta de conversão, isso não era imposto pelas autoridades religiosas. Na verdade, havia muita desconfiança e cautela na questão de teatro envolvendo coisas sagradas.
Outro ponto a ser considerado é que o trabalho desenvolvido pelas missões operava transformações nas comunidades, trazia à tona novas práticas sociais e os missionários deveriam novamente adaptar-se. Somando-se a isso certa solidariedade por parte dos missionários para com as miseráveis condições de vida dos camponeses, ainda no século XVII é possível observar novas práticas, como a capacidade de ouvir mais do que hipnotizar com as palavras, a preocupação com as condições de vida ou o voto de assistência aos camponeses, fazendo parte de todo o aparato que envolvia as estratégias missionárias.
Adriano Prosperi finaliza suas considerações abordando que a questão da “Propaganda Fide” se insere com extrema modernidade no contexto das reformas religiosas. Essa inserção fez nascer um novo personagem, cheio de facetas como intelectualidade, perícia nas artes teatrais, espionagem, apoderação das consciências, manipulação dos sentimentos, e que eram usadas não para fins próprios, mas para o triunfo da causa de Deus. A história das atividades do missionário se constitui de muitíssimas contradições, e por isso mesmo, “merece ser recordada como uma das polaridades barrocas.” (PROSPERI, 1995, p. 171).  

[1] Larissa R. S. Theiss - Licenciando em História pela UFRB