Liberdade ameaçada e constituição mundial

De acordo com um Boletim de Ocorrência (B.O.) que circula nas redes sociais, nesta quinta-feira (2), policiais militares cumpriram uma operação em uma residência de família, na cidade de Forquilhinha (SC), onde um grupo de cinco senhoras cristãs mantinham orações no interior da casa. A operação dizia cumprir o polêmico decreto 515/2020, emitido pelo governador do estado, Carlos Moisés, sobre isolamento social e quarentena. Especialistas falam em ameaça à liberdade religiosa. No entendimento da Polícia Militar, o culto doméstico, que já vem ocorrendo há alguns meses na cidade, vai contra o decreto de Carlos Moisés (PSL), que determinou a proibição de “eventos e as reuniões de qualquer natureza, de caráter público ou privado, incluídas excursões, cursos presenciais, missas e cultos religiosos”.

O boletim de ocorrência emitido pela PMSC relata que cinco pessoas da mesma família estavam orando dentro de sua casa, no Residencial Forquilhinha, mas, após ação policial, interromperam as orações alegando não terem conhecimento de que o decreto estadual proibia cultos dentro da própria residência. Os policiais então orientaram a família a interromper as orações para evitar “aglomeração de pessoas e contaminação com o vírus Covid-19”, segundo informou o site Gospel Prime. […]
O procurador Walmor Moreira, que classificou a operação como um atentado à liberdade religiosa no país, informou pelo Twitter que irá entrar com denúncia ao Ministério Público. […] O procurador considera que Santa Catarina vive um “regime de exceção” que usa a pandemia como justificativa para violação de liberdades fundamentais dos cidadãos. […] (Estudos Nacionais)
Outra matéria, essa publicada no Él País, traz preocupações com respeito à soberania das nações e à liberdade de crença:
“Os períodos prolongados de calma favorecem certas ilusões de ótica”, disse o escritor alemão Ernst Jünger em The Forest Passage: “Uma delas é a suposição de que a inviolabilidade do domicílio se funda na Constituição, é assegurada por ela. Na verdade, a inviolabilidade do domicílio se baseia no pai de família que aparece na porta de casa acompanhado por seus filhos e empunhando um machado”. A catástrofe desencadeada pelo coronavírus pode ser considerada um desses momentos em que Jünger considera da verdade, caso mude de escala. No meio do caos, onde Jünger via o pai como a garantia da segurança, agora reaparece o Estado – nacional – como o garantidor último da vida de sua população. Além dos bem-intencionados acordos internacionais e esferas supranacionais como a União Europeia, o papai Estado parece o único capaz de garantir a inviolabilidade do território e proteger seus nacionais.
Mas faz sentido fechar as fronteiras para lutar contra o coronavírus? Esse retorno à soberania nacional não é uma reação melancólica diante de um perigo sem passaporte? Esse gesto não lembra, no fundo, as filas que vimos surgir nas lojas de armas nos Estados Unidos? Isso não é matar moscas com tiros de canhão? Um grupo de juristas e ativistas escolheu um caminho muito diferente e, apesar do momento crítico e agitado atual, lançou uma ideia colossal: uma Constituição da Terra como ferramenta de governança global. Frente ao reflexo nacional, a imaginação cosmopolita quer avançar na globalização do direito.
“Não é uma hipótese utópica”, disse o ex-juiz e filósofo do direito italiano Luigi Ferrajoli durante a primeira assembleia desse movimento em Roma em 21 de fevereiro. “Pelo contrário, é a única resposta racional e realista ao mesmo dilema que Thomas Hobbes [autor de Leviatã e teórico do Estado moderno] enfrentou há quatro séculos: a insegurança geral da liberdade selvagem e o pacto de coexistência pacífica sobre a base da proibição da guerra e a garantia da vida”, afirmou.
O contexto da assembleia era ao mesmo tempo antigo e ferozmente atual: a Biblioteca Vallicelliana, uma instituição tão velha quanto Hobbes, e na capital da Itália, que detectava à época o primeiro contágio local pelo vírus. Mas a ideia vem sendo forjada há anos, promovida pelo jornalista italiano Raniero La Valle, e foi anunciada formalmente em Roma em dezembro de 2019, quando o coronavírus ainda era uma realidade sem nome e reconhecimento oficial na China. “Há anos que se vem trabalhando em uma mesma direção, ainda que a partir de diferentes perspectivas, como a necessidade de um novo contrato social”, diz por telefone de Buenos Aires, Argentina, Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz e outros dos promotores. Agora a necessidade é viral e vital.
“A Constituição do mundo não é o Governo do mundo, e sim a regra de compromisso e a bússola de todos os Governos para o bom governo do mundo”, nas palavras de Ferrajoli, autor de Constitucionalismo más allá del Estado (Constitucionalismo além do Estado). O sujeito constituinte não seria dessa vez um novo Leviatã, e sim os habitantes do mundo, “a unidade humana que alcança a existência política, estabelece as formas e os limites de sua soberania e a exerce com o propósito de continuar a história e salvar a Terra”, afirmou em Roma. O processo exige a adesão dos Estados.
A destruição do meio ambiente, o clima, a fome e a segurança dos imigrantes pareciam os problemas mais urgentes até a pandemia que desatou a pior crise desde a Segunda Guerra Mundial, de acordo com as Nações Unidas. […]
O final da Segunda Guerra Mundial é o ponto de referência, tanto para os que defendem dar esse passo como para seus detratores. “Se ao final da guerra nos falassem que hoje existiria uma Corte Penal Internacional, e que na Europa e América Latina a convenção dos direitos humanos iria se impor aos Estados, não teríamos acreditado”, afirma Luis Arroyo Zapatero, professor de Direito Penal da Universidade de Castilla-La Mancha, a favor da ideia do constitucionalismo planetário. De Roma saíram, em 1957, os tratados fundacionais da atual União Europeia, “que à época era uma ideia extravagante dos franceses e, quase exclusivamente, de Jean Monnet”, acrescenta Arroyo. […]
Para Ferrajoli, uma Constituição não é a vontade da maioria, e sim a garantia de todos. A Constituição mundial obrigaria a proteger a igualdade, o direito à não discriminação e à saúde. Direitos que pertencem à “esfera do que não se pode decidir” e que não podem estar à mercê das maiorias. Ninguém, diz, está falando de um Estado mundial: “Cada país deverá poder continuar decidindo sobre o que se pode decidir”, ou seja, as políticas que não violentam os direitos fundamentais.
Com 2,5 bilhões de pessoas confinadas no mundo, a crise sanitária prova, em sua opinião, que somente as “soluções globais” garantem nossa sobrevivência. “É absurdo que acumulemos armamentos para a guerra e que não acumulemos máscaras para uma pandemia”, diz Ferrajoli. […]
Nota: Graças à crise pandêmica atual, ideias de gaveta estão sendo consideradas, iniciativas aceleradas e ensaiadas, e o protagonismo de figuras proféticas começa a ficar ainda mais claro. Nada do que já não soubéssemos. O que há de vir virá. Creia. [MB]