“As coisas que descrevestes como ocorrendo em Indiana, o Senhor revelou-me que haviam de ocorrer imediatamente antes da terminação da graça. Demonstrar-se-á tudo quanto é estranho. Haverá gritos com tambores, música e dança. Os sentidos dos seres racionais ficarão tão confundidos que não se pode confiar neles quanto a decisões retas. E isto será chamado operação do Espírito Santo” (Ellen White, Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 36).
O que ocorreu em Indiana? Que eventos são esses que voltariam a assolar o povo de Deus imediatamente “antes da terminação da graça”? Voltemos no tempo. Estamos no ano de 1900, numa reunião campal em Muncie, Indiana. Há gritos e muita confusão; a música é alta e provoca alteração dos sentidos; tambores, tamborins e outros instrumentos são usados com grande efeito psicológico sobre os presentes; pessoas caem no chão inconscientes e são carregadas ao púlpito, onde mais gritos e momentos de grande euforia têm lugar. Ao recobrar a consciência, são consideradas aptas para ser trasladadas como Enoque e Elias; têm a “carne santa”, pois passaram pela “experiência do jardim”. Em que consistia a experiência do jardim? Há algum tipo de argumento teológico para tais comportamentos?
No sermão pregado por Arthur L. White, neto de Ellen, no dia 22 de junho de 1985, ele disse: “Durante os anos de 1899 e 1900, o presidente da Associação Indiana e alguns dos ministros estavam defendendo a doutrina da ‘carne santa’. Eles ensinavam que aqueles que seguissem Cristo na experiência do Getsêmani conseguiriam essa ‘carne santa’. Tendo carne santa eles seriam livres de toda tendência para pecar e não experimentariam a corrupção; assim nunca morreriam, e viveriam para ver Jesus voltar. Essa fé proclamada era similar àquela que levou Enoque e Elias à transladação.”
O comportamento histérico e mundanizado do grupo de Indiana tinha uma argumentação teológica para fundamentar suas práticas: “Eles sustentavam que aqueles que foram santificados não podem pecar. E isso naturalmente leva a crer que as afeições e desejos dos santificados eram sempre retos, e não corriam o risco de conduzi-los ao pecado. De acordo com esses enganos, praticavam os piores pecados sob o manto da santificação, e através de sua influência enganadora e hipnótica estavam obtendo um estranho poder sobre alguns de seus adeptos, que não viam o mal dessas teorias aparentemente belas e sedutoras. […] Os enganos desses falsos mestres foram nitidamente abertos perante mim, e vi o terrível juízo que se levantava contra eles no livro de registros, e a culpa horrível que os cobria, por professarem completa santidade enquanto seus atos diários eram ofensivos aos olhos de Deus” (Life Sketches, p. 83, 84 [grifo nosso]).[1]
Em síntese, podemos definir o grupo de Indiana com dois problemas básicos: um teológico e outro comportamental.
Teológico: possuíam uma teologia equivocada, na qual havia uma defesa clara da possibilidade de não mais pecar, pois teriam adquirido uma “carne santa”; portanto, eram perfeitos. Daí surge o termo “perfeccionismo” como uma referência a esse grupo que pregava a possibilidade de não mais pecar.
Comportamental: tinham práticas mundanas. Tais práticas, como apontado acima, eram resultado de sua teologia equivocada. Uma vez santos e sem pecados, poderiam fazer qualquer coisa que não afetaria o corpo.
O que ocorreu em Indiana, na verdade, foi uma reprise do que aconteceu pouco depois do desapontamento de 1844. Note que a teologia equivocada da “carne santa” chegou a desencadear comportamentos tão nocivos a ponto de envolver questões sexuais:
“Nenhuma animação deve ser dada a tal espécie de culto [falando de Indiana]. A mesma espécie de influência se introduziu depois da passagem do tempo em 1844. Fizeram-se as mesmas espécies de representações. Os homens ficaram agitados, e eram trabalhados por um poder que pensavam ser o poder de Deus. Viravam e reviravam o corpo, como se fosse uma roda de carro, afirmando que não seriam capazes de fazer isso a não ser por poder sobrenatural. Havia a crença de que os mortos haviam ressuscitado e tinham ascendido ao Céu. O Senhor deu-me uma mensagem para esse fanatismo, pois estavam sendo eclipsados os belos princípios da verdade bíblica.
“Homens e mulheres, que supunham ser guiados pelo Espírito Santo realizavam reuniões em estado de nudez. Falavam acerca de carne santa. Diziam estar para além do poder da tentação, e cantavam, e gritavam, e faziam toda sorte de demonstrações ruidosas. Esses homens e mulheres não eram maus, mas estavam enganados e iludidos. […] Satanás estava moldando a obra, e sensualidade era o resultado. A causa de Deus foi desonrada. A verdade, a sagrada verdade, era nivelada ao pó por agentes humanos” (Reavivamento e Seus Resultados, p. 52, 53 [grifo nosso]).
O que ocorreu em Indiana não progrediu, principalmente depois da reunião da Conferência Geral de 1901, quando a senhora Ellen White apelou e trouxe severas repreensões ao grupo. Arthur White em seu sermão contou como foi esse momento:
“Ellen White tinha vindo a Battle Creek com pleno conhecimento do que iria acontecer em Indiana, tanto por cartas que ela havia recebido como das visões que Deus lhe dera. Sabia que para salvar a igreja ela devia enfrentar esse ensino estranho. Escolheu então fazê-lo na reunião de obreiros às 5h30 da manhã de quarta-feira, 17 de abril. Contou ao auditório que uma das razões por que ela viera tão repentina e rapidamente da Austrália para os Estados Unidos fora para tratar desse fanatismo. A situação que se lhe deparava naquela manhã tinha-lhe sido revelada na Austrália em janeiro de 1900. ‘Se isso não tivesse sido apresentado a mim, eu não estaria aqui hoje, mas estou aqui em obediência à palavra do Senhor’ (GCB 1901, p. 426).
“Em linguagem clara e corajosa ela expôs a situação: ‘Foi-me dada instrução relativa à última experiência dos irmãos de Indiana e o ensino que deram às igrejas. Mediante esse movimento e ensino o inimigo tem estado operando para desencaminhar almas.
O ensino dado com relação ao que é denominado ‘carne santa’ é um erro. Todos podem obter agora corações puros, mas não é correto pretender nesta vida possuir carne santa. O apóstolo Paulo declara: ‘Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum’ (Romanos 7:18).
“‘Aos que têm procurado tão afanosamente obter pela fé a chamada carne santa, quero dizer: Não a podeis ter. Nem uma alma dentre vós tem agora carne santa. Ser humano algum na Terra tem carne santa. É uma impossibilidade. Se aqueles que falam tão francamente de perfeição na carne pudessem ver as coisas sob seu verdadeiro aspecto, recolher-se-iam com horror de suas ideias presunçosas’ (Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 31, 32 [grifo nosso]).”[2]
Veja que nos textos acima Ellen White apresenta o “ensino”, dando a entender que o movimento da “carne santa” não era apenas um movimento que tinha aspectos unicamente comportamentais, mas havia também o aspecto teológico, que era repassado para o povo na forma do ensino. É necessário dizer que não temos em nossos dias um movimento semelhante ao de Indiana, que defenda a possibilidade de não pecar (equívoco na teologia) somado a comportamento mundano; um movimento que venha a fundir esses dois elementos: teológico e comportamental. Mas a profetisa do Senhor advertiu: “As coisas que descrevestes como ocorrendo em Indiana o Senhor revelou-me que haviam de ocorrer imediatamente antes da terminação da graça.”
Apesar de não termos hoje um grupo que cumpra exatamente o que houve em Muncie, podemos ver claramente que têm se levantado em nosso meio dois grupos distintos que, combinados, formam exatamente o que ocorreu em Indiana:
- Os atualmente denominados “perfeccnionistas” ou ultraconservadores, que defendem a possibilidade de viver aqui na Terra sem pecar (como os de Indiana), apesar de quase nenhum deles ter a coragem de admitir essa impecabilidade. É claro que para admitir tal teologia equivocada eles usam textos da Bíblia e do Espírito de Profecia de maneira descontextualizada.
- Os “mundanizados” ou ultraliberais, que trazem práticas e comportamentos mundanos para a igreja, como a música profana, por exemplo (assim como a música e os comportamentos dos de Indiana), sob a alegação de que a graça de Cristo é suficiente e não precisam de mudanças comportamentais, pois já têm o Espírito Santo.
É importante observar que esses grupos hoje estão em completo antagonismo. Os chamados perfeccionistas não admitem comportamentos mundanos nem músicas profanas, como ocorreu em Indiana. Por isso alegam não serem “perfeccionistas” (não tomam o termo para si) nem aceitam a comparação com o movimento da “carne santa”. Referem-se aos que têm comportamentos e práticas mundanos como sendo os que cumprem exatamente a profecia, referindo-se ao que ocorrerá no tempo do fim como uma repetição de Indiana, uma vez que Ellen White diz que “haverá gritos com tambores, música e dança”. Como eles não têm tais práticas, não podem cumprir a profecia. Será? Será que a profecia de Ellen White está relacionada apenas à parte comportamental, ou envolverá também o aspecto teológico?
Já os ultraliberais de igual forma argumentam que o que ocorreu em Indiana nada tem que ver com a música profana ou aspectos relacionados à adoração equivocada que estavam oferecendo por meio de seus comportamentos mundanos, mas com a ideia do perfeccionismo, como disse certo liberal em um artigo: “Em nenhum momento ela [Ellen White] condenou a música da campal ou os tambores porque estavam sendo abusados musicalmente. A música do movimento era um ‘laço’ ou ‘armadilha’ porque disfarçava o perfeccionismo emocionalista e o culto ruidoso” (grifo nosso).[3]
Como podemos perceber, os liberais jogam para os perfeccionistas o episódio de Indiana, e de modo semelhante se esquivam de que aquela ocorrência tenha algo a ver com eles hoje, uma vez que, conforme eles alegam, não havia mundanismo em Indiana, nem mesmo na música (o que contraria claramente o que foi escrito por Ellen White), e quem cumpre hoje o que ocorreu em Indiana seriam os perfeccionistas atuais.
Como percebemos, nenhum dos grupos assume os fatos de Indiana como sendo repetidos hoje através de seus grupos. O que existe atualmente é um “jogo de empurra” entre os perfeccionistas e os liberais. Nenhum quer ser identificado com o episódio de Indiana. Mas será isso verdade?
Parece que com o pouco êxito obtido com o movimento da “carne santa” nos anos de 1899 a 1901, Satanás resolveu mudar a tática. Não foi avante a ideia de uma teologia perfeccionista com a prática mundana. Então o inimigo como que “dividiu” o movimento da “carne santa” em dois grupos modernos, exatamente nos dois pontos que definiam o grupo de Indiana: teológico e comportamental, ou, diríamos atualmente, “perfeccionistas e liberais” que, combinados, seriam quase uma expressão exata do que ocorreu na campal de Indiana. Eles não sabem, mas cada um desempenha uma parte no processo de retorno de Indiana aos nossos dias: um com o aspecto teológico e outro com o aspecto comportamental, complementando-se.
Analisemos estes textos:
“Os que têm muita confiança em si mesmos pôr-se-iam em ação, como fizeram alguns em ______, que tinham muito a dizer acerca de carne santa. Esses foram arrastados por um engano espírita. […] Hão de introduzir-se erros, e advogar-se-ão doutrinas estranhas. Alguns se apartarão da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores e a doutrinas de demônios. Já nos tempos da fundação do primeiro hospital, começaram a aparecer essas coisas. Eram semelhantes aos erros que se manifestaram pouco depois da decepção de 1844. Apareceu um forte aspecto de fanatismo, denominando-se o testemunho do Espírito Santo (carne santa). Foi-me dada uma mensagem de reprovação a essa má obra” (Carta 79, 1905).
“Entre outros pontos de vista, eles afirmavam que os que eram uma vez santificados não podiam mais pecar [note que eles não se achavam glorificados aqui na Terra, mas santificados], e isto eles apresentavam como alimento evangélico. Suas falsas teorias, com o peso da enganosa influência de que eram portadoras, estavam causando grande dano a eles próprios e aos outros. […] Futuramente, a verdade será falsificada pelos preceitos dos homens. Teorias enganosas serão apresentadas como doutrinas certas. A falsa ciência é um dos instrumentos que Satanás empregou nas cortes celestes, e é por ele usada hoje” (Evangelismo, p. 600).
“As coisas que descrevestes como ocorrendo em Indiana, o Senhor revelou-me que haviam de ocorrer imediatamente antes da terminação da graça. Demonstrar-se-á tudo quanto é estranho. Haverá gritos com tambores, música e dança. Os sentidos dos seres racionais ficarão tão confundidos que não se pode confiar neles quanto a decisões retas. E isto será chamado operação do Espírito Santo” (Mensagens Escolhidas, v. 2, p. 36).
Note que Ellen White claramente aponta como algo a ser repetido no futuro, não apenas os aspectos comportamentais, mas, de igual forma, aspectos teológicos. E é exatamente o que temos visto atualmente: um grupo introduzindo o mundanismo na igreja e trazendo músicas com expressões mundanas, semelhantemente ao ocorrido em Indiana, e um grupo perfeccionista defendendo a ideia de que é possível viver aqui sem pecar, pois estão vivendo a “santificação”. Diríamos que esses dois grupos representam as duas faces de uma mesma moeda. Cada grupo nega e até repudia o que ocorreu em Indiana, mas, quando nos aprofundamos no cerne do que de fato ocorreu lá, percebemos que os dois extremos atuais nada mais são do que uma versão moderna do movimento da “carne santa”. Um grupo responsável pela parte teológica e outro responsável pela parte comportamental. São rivais que se completam, antagônicos que se harmonizam, diferentes que se atraem num único objetivo: cumprir a profecia de fazer com que o que houve em Indiana tenha novamente lugar no meio do povo de Deus pouco antes da vinda de Cristo.
Apelo aos dois grupos a que tenham o mesmo comportamento de um dos líderes do movimento da “carne santa”, quando confrontado por Ellen White em 1901, na reunião da Conferência Geral:
“Ellen White tinha mais para dizer como advertência, muito mais. Foi com faces solenes que os ministros saíram da reunião naquela manhã. Eles pouco sabiam do que estava reservado para eles na reunião de obreiros no dia seguinte. Logo após a abertura da reunião, R. S. Donnell, presidente da Associação Indiana, levantou-se e perguntou se ele podia fazer uma declaração. Com palavras medidas ele derramou uma confissão sincera, em cujo trecho ele disse: ‘Sinto-me indigno de estar em pé perante esta grande assembleia de meus irmãos nesta manhã… Quando eu encontrei este povo, fiquei mais que satisfeito em saber que havia um profeta no meio dele e desde o princípio tenho sido um crente firme e um ardente defensor dos Testemunhos e do Espírito de Profecia. Foi-me sugerido tempos atrás que a prova sobre esse ponto de fé vem quando o testemunho chega diretamente a nós. Como quase todos vocês sabem, no testemunho de ontem de manhã a prova veio a mim. Porém, irmãos, eu posso agradecer a Deus nesta manhã porque a minha fé no Espírito de Profecia permanece inabalável. Deus falou. Ele disse que eu estava errado, e eu respondo que Deus está certo e eu estou errado. Eu sinto muito, muitíssimo pelo que eu fiz que poderia arruinar a causa de Deus e levar qualquer um ao caminho do erro” (GCB 1901, p. 422).[4]
(Eleazar Domini, além de bacharel em Teologia, é mestre em Teologia na área de Interpretação e Ensino da Bíblia com ênfase na língua hebraica. Atualmente é pastor distrital em Aracaju)
via (Michelson Borges)
Referências: