No texto de Marcos 3:33, a expressão “quem é minha
mãe e meus irmãos” tem sido mal compreendida por alguns leitores da Bíblia.
Vários sentidos têm sido dados, especialmente no que diz respeito à maneira
hostil de Jesus para com sua família biológica (HARRIGTON, 2011, p. 81). Mulholland, sob a mesma
temática, vai concordar que a expressão parece indicar aspereza (1978, p. 76),
e Hendrikson vai sugerir uma tensão ou divergência, uma vez que o contexto
parece aludir à ideia de que a credibilidade de Jesus perante sua própria
família era baixa.
Para
compreender a narrativa, Osborn (2009, p. 264) propõe um
estudo
cuidadoso do enredo e os minienredos dentro dos textos narrados para determinar
os temas em desenvolvimento e as caracterizações propostas pelo autor, pois são
os melhores indicativos da (s) mensagem (ens) básica (s) de uma obra literária.
A interação entre os oponentes e a interação entre os personagens principais e
os secundários são as possíveis diretrizes mais claras para o significado de
uma passagem.
Para
isto, segundo a proposta do próprio Osborn, será feita uma análise geral da
narrativa seguindo os critérios de estrutura, redação e contexto (2009, p.
276-283).
Análise estrutural
Soares
(2012, p. 155) organiza a estrutura em três cenas, numa construção em formato sanduíche:
A
20-21: saem os “seus” – diziam: “Enlouqueceu”;
B
22-30: cena central: disputa com os escribas;
a.22:
acusação: “possuído por Belzebu”;
b.23-26:
comparações sapienciais da casa e do reino (Satanás)
c.27:
a invasão da casa do homem forte;
b’.28-29:
a blasfêmia contra o Espírito Santo (linguagem jurídica);
a’.30:
conclusão: “possuído de um espírito impuro”;
A’.31-35:
chegou “sua mãe e seus irmãos” e ficam de fora.
As
cenas intercalam acontecimentos que vão estruturar a narrativa de acordo com o
objetivo central do escritor e do personagem principal. A cena (A; A’) se
relaciona com a oposição da própria família de Jesus, enquanto que a cena (a;
a’) descreve a oposição dos escribas. A cena (b; b’) apresenta o discurso
através de parábolas feito para o público presente, enquanto que a cena (c),
apresenta o fim do poder do “homem forte” (v. 27), do verdadeiro vilão e
causador do mal. As cenas montam os acontecimentos em ordem ascendente em
sentido comparativo das incursões da família de Jesus e dos escribas em
detrimento da relação interativa e missiológica com o povo.
Análise redacional
De
acordo com Lopes (2006, p. 195), o conjunto literário onde o verso 33 está
inserido se estrutura mediante três cenas distintas que ele chamará obviamente
de introdução para a blasfêmia contra o Espírito Santo:
A
primeira cena surge em Marcos 12:22, 23 quando Jesus realiza alguns milagres
como evidência de Seu poder. A admiração do povo como resultado dos feitos de
Cristo parece atrair a hostilidade dos escribas.
Na
segunda cena, em Marcos 3:21, a família de Jesus surge com o objetivo de
impedir a continuidade de suas ações por julgar que Ele estava fora de si. O
texto não oferece muitos detalhes a este respeito, mas o evangelho de Marcos
registra duas acusações contra Jesus, (1) que Ele estava louco, e (2) e que
estava possuído pelo demônio. O relato
da intervenção da família de Jesus começa no v. 21 e se encerra nos vs. 31.
Na
terceira cena, Lopes apresenta a posição dos inimigos (3:22): Os escribas,
tomados de inveja, diante da crescente popularidade de Jesus, resolvem dar mais
um passo na direção de impedir que o povo o seguisse. Eles já haviam censurado
Jesus de ser blasfemo pelo fato dele ter perdoado pecados.
A
terceira cena desenrola um antagonismo ao ministério de Jesus por parte dos
escribas que O interpõe com acusações severas. Portanto, estas três cenas
parecem justificar o motivo das parábolas contadas a partir do v. 23, a
descrição sobre blasfêmia contra o Espírito Santo no v. 29 e a aparente
hostilidade à Sua família no v. 33.
Contextualização
A
ruptura entre Jesus e Sua família física parece iniciar-se nos vs. 20 e 21
(POHL, 1998, p. 146), enquanto que uma nova família em nível elevado parece ser
sublimada a partir dos versos 33 a 35 (DELORME, 2014, p. 55). A rejeição dos escribas e sua interpolação
entre Cristo e a multidão assemelha-se a mesma interjeição de Sua própria
família ao Seu ministério. Estas duas situações podem ter servido de base para
a introdução das parábolas contadas a partir dos vs. 23 a 26 aludindo à ideia
central de reino ou casa divididos que poderia se configurar em blasfêmia
contra o Espírito Santo (DELORME, 2014, p. 55).
Significado teológico e aplicação
O
significado teológico para “quem é minha mãe e meus irmãos” (Mc 3:33) está
longe de ser uma reprovação ou hostilidade por parte de Jesus, mas um chamado
especial para fazer parte da família que está acima da família meramente humana
– a celestial. Mulholland declara que as obrigações familiares são reforçadas
em Êxodo 20:12 e uma exigência cultural daquela época. A pergunta provocativa
de Jesus, segundo Mulholland, era um chamado ao discipulado radical com
promessas excepcionais (MULHOLLAND, 1978, p. 76).
O
contexto da narrativa nos ajuda a perceber também que a expressão “quem é minha
mãe e os meus irmãos” é antecedida pela rejeição dos Escribas e tentativa de
anular a influência e poder das palavras de Jesus perante a multidão. Somado a
este ocorrido, a narrativa mostra algo semelhante ocorrendo com a própria família
de Cristo ao se indispor a Ele no momento em que falava ao povo. A rejeição e a
tentativa de intermissão, como narra o contexto, pode ter servido de cenário ou
de analogia para a introdução do conceito de família espiritual como algo mais
sublime, além do resultado - “blasfêmia contra o Espírito Santo” (v. 29) - pela
insistência em repelir a voz de Deus. Hendriksen prevê que Maria e os irmãos de
Jesus poderiam ter compreendido naquela circunstância o ministério dEle não
poderia ser gerenciado pelos laços humanos e sim pela vontade de Deus (2003, p.
190). A vontade de Deus é que todos, sem exceção, sejam recebidos como filhos e
filhas da família divina. Unidos pela sua obediência a Deus, eles se tornam
irmãos e irmãs de Jesus. Uma nova parentela espiritual é inaugurada nas
declarações de Cristo (BATTAGLIA et al. 1978, p. 46), uma família unida por um
sangue humano derramado, porém com proporções ultra-humanas. É neste sangue que
todos nós podemos ser um em Cristo com permanência e vínculo eternos.
Referências
BATTAGLIA, Oscar;
ALVES, Ephraim Ferreira. Comentário ao Evangelho
de São Marcos. Petrópolis: Vozes, 1978.
DELORME, J; LEMOS, Benôni. Leitura do evangelho segundo Marcos. 3. ed.
São Paulo - SP: Paulus, 1982.
FITZMYER, Joseph
A.; MURPHY, Roland E.; BROWN, RAYMOND E. (Ed.). Novo comentário bíblico
São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. Tradução
de Celso Eronides Fernandes. São Paulo - SP: Paulus, 2011.
HENDRIKSEN,
William. Comentário do Novo Testamento: Marcos.
Tradução de Elias Dantas. São Paulo - SP: Cultura Crista, 2003.
LOPES, Hernandes Dias. Marcos: o evangelho dos milagres. 2. ed. São
Paulo - SP: Hagnos, 2012.
MULHOLLAND, Dewey
M; MENGA, Maria Judith Prado. Marcos: Introdução
e comentário. São Paulo - SP: Vida Nova, c1978. 240 p. (Cultura bíblica).
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à
interpretação bíblica. Tradução de Daniel de Oliveira, Robinson N. Malkomes,
Sueli da Silva Saraiva. São Paulo - SP: Vida Nova, 2009.
POHL, Adolf. Evangelho de marcos: comentário esperança.
Tradução de Udo Fuchs. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1998. 476 p., 23
cm. (Comentário Esperança). Contêm sumário, índice e bibliografia. ISBN
85-86249-13-0.
SOARES, Sebastião
Armando Gameleira; CORREIA JÚNIOR, João Luiz; OLIVA, Jose Raimundo. Evangelho de Marcos. São Paulo - SP: Fonte
Editorial, 2012. 495 p., 23 cm. ISBN 978-85-63607-76-8.
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Gilberto Theiss - Graduado em Teologia, Mestrando em Interpretação Bíblica, Pós-Graduado em Filosofia, Ciências da Religião e Pós-Graduando em História e Antropologia. Atualmente é pastor no Estado do Ceará.
Gilberto Theiss - Graduado em Teologia, Mestrando em Interpretação Bíblica, Pós-Graduado em Filosofia, Ciências da Religião e Pós-Graduando em História e Antropologia. Atualmente é pastor no Estado do Ceará.