O dia 31 de outubro de 1517 foi uma data
que mudou o mundo ocidental. Um frei alemão chamado Martinho Lutero fixou um
cartaz à porta da igreja do castelo de Wittenberg. O anúncio estampava 95 teses
contra a venda de indulgências (documento que assegurava o perdão de pecados), uma
prática popular da Igreja Católica na época. A cristandade ocidental, até então
praticamente monolítica, fragmentou-se. Surgiram centenas de denominações
protestantes, cada uma com a pretensão de reformar a Igreja. Hoje, é
virtualmente impossível determinar o número exato das seitas cristãs, estimado
na casa das dezenas de milhares.
A um ano de o ato histórico de Lutero
completar os 500 anos, passos importantes estão sendo dados para a aproximação
de católicos e protestantes. Nesta segunda-feira, o papa Francisco desembarcou
em Malmo, na Suécia, país historicamente protestante, em um encontro com a
liderança da Federação Luterana Mundial. “Essa viagem é importante porque é uma
viagem eclesial, muito eclesial no campo do ecumenismo”, expressou o pontífice durante
conversa com os jornalistas que acompanhavam o voo.
Em junho deste ano, a assinatura de
um guia litúrgico intitulado “Do conflito à comunhão” revelou o desejo mútuo
pelo fim das desavenças históricas e a consumação de uma unidade articulada em
décadas de discussão sobre o ecumenismo. Se bem que o ato ecumênico na
Suécia simbolize a iminente conciliação entre luteranos e católicos, há
sinais de uma aproximação crescente de outros grupos de protestantes,
evangélicos e pentecostais com a Igreja Católica.
As causas que dividiram o cristianismo
não estão sendo consideradas em sua reunificação. As motivações do rompimento
dos protestantes com os católicos e das denominações protestantes entre si
foram doutrinárias. A visível falha do movimento ecumênico consiste em elaborar
a unidade cristã sem rever os pontos doutrinários que precipitaram o cisma.
Enquanto a volátil e multiforme igreja protestante aceita cada vez mais o
discurso conciliador do papa, a igreja romana permanece inabalável sobre os
mesmos fundamentos milenares reafirmados na contrarreforma do século 16, as
mesmas questões que, para os reformadores, eram inaceitáveis e razão
incontestável para o rompimento com a Sé romana.
O grande questionamento protestante era
a revisão dos dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana à luz da Bíblia. Roma
nunca reconsiderou suas posições. Portanto, o protesto de Lutero ainda
permanece válido. A unidade cristã pela qual Jesus orou
jamais deve ser conquistada sacrificando a correta interpretação de Sua
Palavra. O legítimo ecumenismo deveria acontecer com cada denominação cristã
revendo seus concílios, catecismos, credos e suas confissões de fé, rejeitando
os pontos em desacordo com as Sagradas Escrituras e acrescentando os preceitos
bíblicos negligenciados por séculos.
Curiosamente, a prerrogativa de
completar a Reforma Protestante foi assumida por uma denominação cristã surgida
no despertamento milenarista do século 19, nos Estados Unidos. Os adventistas
do sétimo dia entendem que a Reforma será concluída por meio de seu movimento.
Os adventistas sempre entenderam que sua
missão é ecumênica. Diferentemente de outras denominações protestantes, os
adventistas não se contentaram em estabelecer igrejas nacionais, ainda que
federadas a alianças internacionais, como outros protestantes. A igreja
adventista do sétimo dia é, por natureza, mundial, católica, no sentido do
significado original da palavra. O nome foi primariamente aplicado à igreja
cristã no sentido de que sua missão se estende a todo o planeta. Nesse sentido,
a igreja adventista é autenticamente católica, uma vez que entende que sua
missão evangélica se destina a alcançar “cada nação, tribo, língua e povo” (Ap
14:6).
No desenvolvimento de suas doutrinas, os
adventistas foram mais radicais ainda que quaisquer dos reformadores. Passaram
por alto concílios, pais da igreja, credos, catecismos e confissões de fé. Uma
vez que entendem que sua missão inclui outros cristãos, católicos e
protestantes, podemos entender que os adventistas têm uma proposta
autenticamente ecumênica, de reunir os cristãos genuínos em uma unidade
doutrinária elaborada conforme a doutrina bíblica purgada de toda tradição
humana.
Há muitas divergências doutrinárias que
dividem as igrejas cristãs. Posso enumerar algumas das principais crenças em
disputa: o significado da ceia do Senhor; a doutrina da salvação e da eleição;
a inspiração da Bíblia; a validade dos dons espirituais após o fim da era
apostólica; o milênio. Um legítimo ecumenismo deve rever pontos como esses,
conciliando os cristãos que se dividiram por causa desses temas em torno de
posições genuinamente bíblicas sobre os mesmos.
Desde a Reforma, a presença de Cristo no
pão e no vinho tem sido tema de divisões. De um lado, católicos argumentam que,
de fato, Cristo se faz pão na missa, a transubstanciação. Luteranos e
anglicanos preferem crer na consubstanciação, uma ideia que procura despir a
idolatria da missa, sem uma modificação radical do rito. Os calvinistas e
evangélicos reduzem a Santa Ceia a mero símbolo. Para alguns, a santa ceia é uma
cerimônia exclusivista. Para outros, deve ser uma celebração aberta.
Os adventistas resgataram um rito da
ceia do Senhor conforme o preceito bíblico, restaurando o lava-pés, e entendem
que, se bem que Cristo não esteja no pão, está presente com os comungantes na
celebração da Ceia. A doutrina do Santuário Celestial revela que o sacrifício
de Cristo, consumado uma única vez na cruz, não precisa ser repetido por meio
da missa. Cristo tem um ministério de intercessão e salvação no Céu, que
continua a obra realizada na cruz. O santuário no Céu, no qual Cristo atua, e
não a igreja, oficia a verdadeiramente válida intercessão em favor do pecador.
Seguindo o exemplo de Jesus, os adventistas praticam a comunhão aberta.
Quanto à doutrina da eleição, os
protestantes acham-se divididos entre calvinistas e arminianos. Os primeiros
seguem a herança do reformador francês Calvino, que superenfatizou o papel de
Deus na salvação, a ponto de dizer que Deus escolhe quem vai ser salvo e
rejeita quem vai se perder. Os arminianos consideram a teologia calvinista uma
aberração, e entendem que o ser humano seja dotado de livre-arbítrio, sendo
responsável por sua própria salvação ou perdição.
Ecumenismo autêntico deve buscar a
unidade cristã sem abrir mão de verdades bíblicas fundamentais
Os adventistas parecem ter encontrado o
ponto de equilíbrio da doutrina da eleição, coisa que os teólogos protestantes
procuram desde o século 17. Embora se incline mais para o lado arminiano,
devido à sua ênfase na santificação, o adventista não consegue entender a
salvação como possibilidade do livre-arbítrio humano, mas como obra soberana de
Cristo. A escritora adventista Ellen G. White, afirmou: “Cristo é a fonte de
cada impulso correto. Ele é o único que pode implantar no coração a inimizade contra
o pecado” (Caminho a Cristo, p. 26).
O mundo cristão se divide a respeito do
conceito que cada pessoa tem de como as Sagradas Escrituras foram produzidas e
que autoridade ela tem sobre a Igreja. Há inerrantistas, para os quais cada
palavra da Bíblia foi ditada por Deus, e os históricos-críticos, que atribuem
uma redação humana à Bíblia, sendo esta, para eles, o produto de uma cultura.
Alguns entendem a supremacia da Bíblia, e dizem ser ela a única revelação de
Deus, enquanto outros valorizam também a tradição cristã. Os adventistas
descobriram que a verdade está num delicado meio-termo. Aceitam a inspiração
das Escrituras, mas creem que esta não se deu por ditado. Cada escritor da
Bíblia pôde refletir nela seu talento humano, bem como suas limitações.
Valorizam a supremacia das Escrituras, sem limitar o Espírito Santo, que
continua a fornecer revelações adicionais e complementares por meio de profetas
modernos, como Ellen G. White.
Quanto à validade dos carismas, os
adventistas também estão em uma posição sugestiva de mediação entre
carismáticos e cessacionistas. Os adventistas não podem ser classificados como
pentecostais, mas, como eles, creem na vigência dos dons espirituais para todas
as eras. Uma posição bíblica que, se acatada por todo o cristianismo, pode ser
o equilíbrio entre esses dois grupos.
Finalmente, a interpretação dos eventos
finais também tem sido um ponto histórico de discórdia no cristianismo. Há
basicamente quatro grandes posições a respeito da ocasião da segunda vinda de
Cristo. São elas, amilenarismo, a posição de que o milênio de Apocalipse 20
seja simbólico; o pós-milenarismo, doutrina de que a vinda de Cristo ocorra
após o milênio; pré-milenarismo dispensacionalista, posição de que Cristo venha
antes do milênio e antes da grande tribulação; pré-milenarismo histórico ou pós-tribulacionista,
a doutrina de que Cristo venha antes do milênio e após a grande tribulação.
Os adventistas creem que Cristo virá
antes do milênio e após a grande tribulação, e têm feito dessa mensagem sua
principal pregação. Essa posição evita os extremos do futurismo e do preterismo
proféticos, encontrando o equilíbrio bíblico em um cumprimento histórico dos
sinais da segunda vinda de Jesus.
Dessa forma, o adventismo, que é
conhecido por evitar associações ecumênicas com outros cristãos, têm sua
proposta de um autêntico ecumenismo, concitando todos os cristãos a abandonar
suas interpretações particulares e se unirem em torno da Palavra de Deus,
cumprindo assim a oração de João 17, na qual Jesus intercedeu pela unidade
cristã (“a fim de que todos sejam um”, v. 21), e na qual também disse: “E eles
têm guardado a Tua Palavra” (v. 6).
FERNANDO DIAS é pastor e editor da
Casa Publicadora Brasileira (Revista Adventista)