Certa vez, um
jovem de pouco mais de 20 anos de idade, sem nenhuma formação acadêmica ou
instrução científica, afirmou que não acreditava em Deus. Questionado sobre a
possibilidade de evidenciar sua descrença, disse que sua fé era baseada na
simples disposição de não crer. Esta era a única ferramenta que este jovem
possuía para dar razão às suas convicções, apenas a predisposição.
Muitos corroboram
com a ideia de que a fé tem sido um dos elementos mais difíceis de serem
compreendidos quando a divergência entra na esfera do sobrenatural em
detrimento do natural. O naturalismo filosófico, por exemplo, formado
geralmente por ateus evolucionistas, algumas vezes se apropria desta palavra, a
fé, para defini-la como vazia, sem sentido ou desprovida de racionalidade e é
neste ponto que se inicia toda a confusão.
Sendo a fé um elemento racional ou, na compreensão de alguns, irracional, a verdade é que, como bem definiu o teólogo anglicano Griffith-Thomas, ela
Sendo a fé um elemento racional ou, na compreensão de alguns, irracional, a verdade é que, como bem definiu o teólogo anglicano Griffith-Thomas, ela
afeta toda a
natureza do homem. Começa com a convicção da mente com base na evidência
adequada; continua na confiança do coração ou emoções com base na convicção e é
coroada no consentimento da vontade, por meio do qual a convicção e a confiança
são expressas em conduta. (THOMAS,
1930).
Não há dúvidas de
que a fé começa com a convicção da mente baseada na evidência adequada, sendo
ela racional ou irracional. Sobre esse pressuposto, poderíamos dizer que,
independentemente de serem ateus ou religiosos, todos estão infectados pela fé,
pois a mesma pode ser utilizada tanto para crer quanto para descrer.
Mas para o líder
do ateísmo moderno, Dawkins, a fé possui uma definição bem interessante, porém
repleta de ingenuidade. Ele afirma que “a fé é infantil [...] A fé em Deus é
exatamente como acreditar em papai Noel e na fada do dente. Quando se cresce
esquece-se de tudo isso”. (MCGRATH, 2008, p. 110).
A afirmação de
Dawkins não nos parece científica e ainda pode ser questionada quanto a possuir
algum teor filosófico. No campo da Ciência e mesmo da Filosofia, a evidência
necessita de discurso inteligente, sóbrio e fortemente embasado. A argumentação
desprovida destes elementos logo choca-se com as suas próprias fragilidades.
Alister McGrath, percebendo tal fragilidade, afirma que
Dawkins
genuinamente parece acreditar que a fé realmente é uma confiança cega, apesar
de nenhum escritor cristão importante adotar tal definição. Esta é uma crença
central para Dawkins, que determina mais ou menos cada aspecto de sua atitude em
relação à religião e aos religiosos. [...] A fé, afirma Dawkins ‘significa
confiança cega, na ausência de evidência ou mesmo diante dela’. Isso pode ser o
que Dawkins pensa; não o que os cristão pensam.
(MCGRATH, 2008, p. 109).
Interessante que
quando analisamos o que renomados cientistas afirmam sobre a fé, percebemos que
há uma disparidade com o significado original da palavra. Nos principais
dicionários da língua portuguesa, a definição para fé é diferente da que é
definida por Dawkins. Fé, segundo o Aurélio e o Houaiss, significa
“Asseveração, afirmação, comprovação de algum fato” (AURÉLIO, 1999; HOUAISS,
2009). Isto implica em racionalidade e não em fé cega como afirma o cientista
da Oxford. Se Dawkins e outros que compartilham da ideia fossem mais atentos,
perceberiam que a definição de fé cega nos dicionários é chamada de “fideísmo”,
que significa “doutrina que dá preferência à fé sobre a razão, que antepõe a fé
à razão” (AURÉLIO, 1999; HOUAISS, 2009). Esta palavra é apresentada como sendo
o oposto do racionalismo, “razão”. “Fideísmo” significa “acreditar como verdade
algo que o indivíduo crê como verdade sem exigir ou procurar provas de
veracidade”. O fideísmo “é um sistema de doutrinas que rejeita o emprego da
razão para o exercício da fé”. Por este motivo é que Geisler definiu que “Se
alguém não tem razão para não usar a razão, então essa posição é indefensável.
Não há razão para que se aceite o fideísmo”. (GEISLER, 2001).
Por incrível que
pareça, a Bíblia, que muitas vezes é acusada de defender uma fé cega, ela mesma
define a fé como aspecto racional, e não irracional. Observe:
Antes, santificai
a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para
responder a todo aquele que vos pedir RAZÃO da esperança que há em vós”
(I Pe 3:15).
Ame o Senhor, o
seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu ENTENDIMENTO”
(Mt 22:37). (Grifos meus)
Isto não significa
que as pessoas que professam ser religiosas e devotas da Bíblia não se
comportem de maneira irracional. A irracionalidade é visível também no meio
acadêmico e científico. O que estas declarações aludem é que, sendo inspirada
ou não, a Bíblia define fé como algo racional e não contrário a isso. A
racionalidade não omite o papel da fé mesmo que tais crenças se baseiem no
materialismo filosófico ou no empirismo científico. A razão está diretamente
associada aos alicerces da fé e não pode ser confundida com irracionalidade.
O DISCURSO NÃO CIENTÍFICO
Nos últimos 20
anos, as discussões em torno da fé e razão se tornaram intensas e afloradas.
Não há dúvidas que Richard Dawkins se tornou o Nietzsche do século XXI. Seus
livros, artigos e declarações contra o teísmo se acumulam como se houvesse uma
verdadeira guerra cognitiva. Suas declarações fortes e chocantes estimulam uma
verdadeira troca de ideias e também, vez ou outra, agressões filosóficas.
Dawkins é ateu declarado e, como reconhecido por muitos, age como se fosse o
messias do ateísmo, se posicionando como o defensor da causa contra os que se
intitulam religiosos. Ele declarou enfaticamente: “Deus é muito improvável e
levo minha vida na predisposição de que ele não está lá” (DAWKINS, 2007, p.
80). É aqui que nossa análise se fortalece, pois embora Dawkins seja um
cientista de renome, percebemos que sua declaração não se sustenta por conceitos
científicos e nem mesmo por discurso filosófico. Segundo o dicionário Aurélio,
a palavra utilizada por ele, “predisposição”, significa exatamente 1. “Ato de
predispor (-se)”. 2. “Vocação, tendência, pendor, inclinação, propensão:
disposição, tendência natural para (algo); inclinação”. (AURÉLIO, 1999;
HOUAISS, 2009).
Desta maneira,
pode-se inferir que Dawkins fez uso de um discurso apropriadamente baseado em
preconceito e se indispõe ao teísmo por desarranjo de ideias e não por
argumento científico. Uma afirmação como esta é chocante, especialmente quando
ela é vinda deste respeitado cientista. O curioso é que, em outra ocasião, ele
mesmo afirmou: “como amante da verdade, suspeito de crenças defendidas com
vigor que não sejam sustentadas pela evidência.” (DAWKINS, 2005, p. 117).
Portanto, com base na própria argumentação de Dawkins, qual é a evidência
existente na sua declaração incisiva de que “levo minha vida na predisposição
de que ele não está lá”? Que base há para tal declaração? Quais as evidências
existentes nela?
Mais realista que
Dawkins foi o geneticista da Universidade de Harvard, Richard Lewontin, que
mostrou que suas convicções materialistas são a priori. Ele não apenas
confessa que seu materialismo[1]
não deriva de sua ciência, mas também admite, pelo contrário, que é seu
materialismo que de fato conscientemente determina a natureza do que ele
concebe ser ciência:
Nossa disposição
de aceitar alegações científicas que vão contra o senso comum é a chave para o
entendimento da verdadeira luta entre ciência e o sobrenatural [...] Não é que
os métodos e as instituições científicas de algum modo nos obriguem a aceitar
uma explicação material do mundo dos fenômenos, mas, ao contrário, somos
forçados, por nossa adesão a priori [conhecimento ou justificação
independente da experiência] a causas materiais, a criar um aparato de
investigação e um conjunto de conceitos que produzam explicações materiais, por
mais contra intuitivas que sejam, por mais difíceis de compreender que sejam
para os não iniciados. (LEWONTIN, apud SAGAN, 1997).
Em suma, sua fé no materialismo, como ele mesmo
confessa, não se origina de sua ciência,
mas sim de algo completamente diferente, como fica bem claro a partir do que
ele diz em seguida: “Além disso, o materialismo é absoluto, pois não podemos
permitir um pé divino na porta”. (LEWONTIN, apud SAGAN, 1997). No discurso de
Lewontin, “não podemos permitir”, não há palavras que demonstram algum tipo de
evidência científica. Na verdade, revelam o mesmo pressuposto de Dawkins, um
discurso baseado apenas na esfera das ideias, ou mais precisamente no que
chamamos de preconceito religioso.
Contrariando a
lógica de Lewontin, Lennox não deixou por menos ao observar que
O materialismo
rejeita tanto o pé divino quanto, pensando bem, a própria porta. Afinal, não
existe um “lado de fora” para o materialista – o “cosmos é tudo o que existe,
ou existiu ou jamais existirá”. [...] Lewontin não quer admitir um pé divino na
porta – ponto final”. (LENNOX, 2011, p. 51).
Friedrich Nietzsche também exemplifica esse mesmo fato. Ele
escreveu que “se fosse preciso nos provar a existência desse Deus dos cristãos,
então devemos ser ainda menos capazes de acreditar nele” (KAUFMANN, 1968, p.
627)
E ainda foi
honesto ao afirmar que “é nossa preferência que decide contra o cristianismo, e
não os argumentos” (Os GUINNES, 2000, p. 114). Está claro, portanto, que a descrença de Nietzsche, assim como dos demais,
está baseada em sua vontade ou em seu fideísmo, e não em seu intelecto.
O imunologista
George Klein, seguindo as pegadas de Nietzsche, foi muito honesto ao afirmar
que seu ateísmo não se baseia na ciência, mas é um compromisso apriorístico de
fé. Comentando uma carta na qual um de seus amigos o descreveu como agnóstico,
ele escreveu:
Não sou agnóstico.
Sou ateu. Minha atitude não se baseia na ciência, mas sim na fé [...]. A
ausência de um Criador, a não existência de Deus é minha fé da infância, minha
crença de adulto, inabalável e santa. (KLEIN, 1992, p. 203)
As
palavras de Klein evocam exatamente o que tem sido elucidado por Dawkins e Nietzsche.
Parece existir uma emersão de conceitos que estão longe dos pressupostos
científicos. Argumentos que não foram construídos ou emoldurados no
laboratório, mas na predisposição de não crer. Paul Davies é outro exemplo de cientista renomado que não faz uso das
prerrogativas empíricas. Ele foi incisivo ao afirmar que
Não é necessário
invocar nada sobrenatural nas origens do Universo ou da vida. Jamais gostei da
ideia de uma intervenção divina: para mim é muito mais inspirador crer que um
conjunto de leis matemáticas possa ser tão engenhosa a ponto de fazer que todas
as coisas existam.[2]
Outro ateu que
parece compartilhar das ideias é Mário César Cardoso, zoólogo da USP que
coaduna com esse fato afirmando:
Para mim a visão
materialista foi uma grande libertação, eu me sentia grandemente desconfortável
com a ideia de um ser superior controlando tudo o que eu fazia, isto nunca me
foi fonte de gratificação e de felicidade.
(SESC TV, 2010).
FIDEÍSMO EM ALTA
Portanto
poderíamos inferir que muitas discussões parecem estar além do microscópio ou
fora dos portões da ciência. Muitos dos argumentos levantados demonstram estar
embasados no mero preconceito religioso. Antes de fazer ciência é defendido um
parecer ideológico ou filosófico sustentado pelas palavras e não por
experimentos, estudos ou pesquisas.
Importante levar
em consideração que o título de cientista não indica infalibilidade discursiva.
O que torna uma conjectura científica é seu pressuposto empírico sustentado por
suas evidências testadas diversas vezes em laboratório. Este argumento é válido
para qualquer estudante, acadêmico, cientista, sendo ele religioso ou ateu. Não
importa sua academia e nem mesmo quais foram os seus renomados mentores, desde que
os argumentos estejam solidamente embasados por aquilo que inviabiliza a
oposição.
O empirismo parece
estar bem distante de algumas dessas discussões quando se insere nelas o
quesito da fé, razão, criação ou mesmo a própria religião. Mais uma vez cabe
aqui a declaração de Lennox ao afirmar que “O fato de existirem cientistas que
parecem estar em guerra contra Deus, não significa exatamente que a própria
ciência esteja em guerra contra Deus”. (LENNOX, 2011, p. 25).
As declarações
contra o teísmo encontradas na literatura ateia, não nos parecem ser baseadas
na fé científica, mas no fideísmo materialista. Diante desta análise, a
conclusão à qual chegamos é que muitos cientistas ateus praticam o fideísmo ou
fé cega com mais audácia do que os próprios cientistas religiosos. Por isto
Paul Davies, embora cético, precisou reconhecer:
Meu trabalho
científico”, explica, “levou-me a acreditar, cada vez mais intensamente, que a
constituição do universo físico atesta um engenho tão assombroso que não posso
aceitá-lo apenas como fato bruto. Parece-me que deve haver um nível mais
profundo de explicação. (DAVIES, 1994, p. 15.)
Paul Davies, mais
uma vez, embora cético em um deus pessoal, precisou reconhecer que estava
atraído pela ideia de que existe algum princípio racional por trás do cosmos
que conduz a matéria em direção a uma evolução para a vida e a inteligência.[3] Ele
reconhece que há algo que não pode ser ignorado em toda a estrutura da
existência humana e extra-humana. Isto reforça com mais severidade os
pressupostos existentes em boa parte das declarações antirreligiosas ou anti-criacionistas.
CONCLUSÃO
O objetivo
primordial deste artigo não é desmerecer o caráter e a visão supostamente
científica dos cientistas que se intitulam ateus, mas evidenciar que nem sempre
as discussões são fieis às deduções e leis que abrilhantam a ciência
contemporânea. Por trás dos bastidores, e algumas vezes no próprio palco das
discussões, os ateus se validam de retóricas amalgamadas de preconceitos e de
preconcepções que evidenciam apenas o seu fideísmo ateístico.
Portanto, a
discussão, algumas vezes, se prende no mero discurso filosófico, e em outras,
no mero discurso da casualidade.
Também fica
evidente que há uma compreensão equivocada do termo fé e que a definição para
fé cega ou irracional tem a ver com fideísmo ao invés de fé. O mal uso de tais
palavras sobrecarregam as incoerências resultantes de tais discussões tornando
confuso alguns dos argumentos ateus. Na verdade, além de confusos, quando
cristãos são acusados de praticar fé cega, o que transparece é que além de
alguns cientistas ateus confundirem fé com fideísmo, eles é que, vez ou outra,
demonstram argumentar sob a premissa fideísta.
Pastor Gilberto Theiss – Graduado e mestrando em Teologia, Pós graduado em filosofia; Ciências da Religião e Pós-graduando em História e Antropologia.
REFERÊNCIAS
DAVIES, Paul. A mente de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 1994.
DAWKINS, Richard. O capelão do diabo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
________. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; ANJOS, Margarida dos; FERREIRA, Marina Baird. Aurélio Século XXI : o dicionário da língua portuguesa. 3. ed., rev. e ampl. -. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética, São Paulo: Editora Vida, 2001.
________. Deus, um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; ANJOS, Margarida dos; FERREIRA, Marina Baird. Aurélio Século XXI : o dicionário da língua portuguesa. 3. ed., rev. e ampl. -. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética, São Paulo: Editora Vida, 2001.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello; Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
KAUFMANN, Walrer. The Antichrist, seção 47 [publicado em português pela Editora Centauro, O Anticristo], The Portable Nietzsche. New York: Viking, 1968.
KLEIN, George. The Atheist in the Holy City, The MIT Press, 1992.
LENNOX, John. Por que a Ciência não
consegue enterrar Deus? São Paulo: Mundo Cristão, 2011.
MCGRATH, Alister. O deus de Dawkins: genes, menes e o sentido da vida. Tradução de Sueli Saraiva. São Paulo: Shedd Publicações, 2008.
NIETZSCHE, Friedrick. Os GUINNESS, Timefor Truth. Grand Rapids, Mich.: Baker, 2000.
PLATÃO. “Apologia de Sócrates”. Versão eletrônica: Virtual Books Online. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/12868520/Apologia-de-Socrates-Platao.
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SAGAN, Carl. The Demon Haunted World: Science as a Candle in the Dark, 9 de Janeiro de 1997.
THOMAS, W.H. Griffith. The principles of theology. Londres: Longmans, Green 1930, p. xviii. A fé inclui, portanto, “a certeza da evidência” e a “certeza de coerência”; “não é cega, mas sim inteligente” (p. xviii-xix).
YANCEY, Philip. Rumores de outro mundo. São Paulo: Vida, 2005.
[1]
Materialismo é o Sistema dos que
julgam que, no universo, tudo é matéria, não havendo substância imaterial.