Entenda a diferença entre o ceticismo
contemporâneo e aquele que foi manifestado pelos personagens bíblicos e
cientistas cristãos ao longo da história
Não é incomum encontrar ateus ou céticos
de renome lamentando o fato de o cristianismo ainda ter tamanha influência na
sociedade de nossos dias. A Bíblia é constantemente acusada de ser um livro
obsoleto, que promove crendices tribalistas sobre a natureza e a origem do
universo. As pessoas que viviam na época em que a Bíblia foi escrita são
retratadas como simplórias, ingênuas e facilmente enganadas por seus líderes
religiosos.
Diante do intelectualismo e individualismo de nossos dias, a crença
religiosa é vista como um entrave ao avanço científico.
Alega-se que, depois de séculos de
observações e pesquisas rigorosas dos fenômenos da natureza, muitos dos mitos
que antes eram ensinados e disseminados foram finalmente abandonados. Também há
quem defenda que as pessoas “educadas” não são nada parecidas com aqueles
nômades ignorantes que vagueavam pelas terras de Canaã. Crer na história da
criação, na travessia do Mar Vermelho ou do nascimento virginal de Jesus é tido
hoje como estupidez, burrice e irracionalidade… Ser religioso em nossos dias é
sinônimo de ignorância e cegueira. O religioso é tido como subjetivo, incerto
ou irreal. Somente o que é científico e empírico deve ser aceito como objetivo,
concreto e real. Por isso, não se vê diferença entre quem acredita na Bíblia e
quem crê no Papai Noel, em unicórnios e dragões. Assim, a sociedade atual é
estimulada a dar valor somente ao que pode ser comprovado em laboratório.
Ceticismo saudável
Em certa medida, concordo que devemos
ser céticos quanto a algumas coisas. Questionar, duvidar e perguntar não só nos
salvam de certas enrascadas, mas abrem portas para novos conhecimentos e
oportunidades. No entanto, o quadro pintado por muitos céticos sobre a Bíblia
está completamente equivocado. Às vezes, fico imaginando se eles realmente
conhecem o livro que tanto criticam.
As pessoas e as histórias que
encontramos na Bíblia retratam uma realidade que imita nossa forma de agir e
pensar em muitos aspectos. Longe de ser simplórios e crédulos, os personagens
da Bíblia apresentaram muitas vezes um ceticismo que beirou à rebeldia – algo
que podemos facilmente identificar em muitos nos dias de hoje.
Gostaria de analisar o comportamento de
três personagens bíblicos que, longe de ser a exceção, demonstraram ter uma
pitada saudável de ceticismo. Esses exemplos são apenas alguns entre muitos que
nos mostram claramente como as pessoas dos tempos bíblicos se preocupavam com o
que era objetivo, concreto e real.
Tomé
O episódio de Tomé duvidando sobre a
ressurreição de Jesus é um dos principais exemplos de ceticismo encontrados nas
Escrituras (Jo 20:24-25). Sua declaração mostra que a relutância em crer na
ressurreição não é de hoje. Afinal, quando foi a última vez que você
testemunhou uma ressurreição? No caso de Tomé, ele havia presenciado a
ressurreição de Lázaro e, mesmo assim, teve dificuldade em crer na ressurreição
de Jesus. O que ele precisava era de evidências empíricas! Isso lembra um pouco
David Hume, filósofo, historiador e ensaísta do século 18 que ficou conhecido
por seu ceticismo!
Ezequias
Outro caso interessante é o do rei
Ezequias. Depois de ter enfrentado Senaqueribe e vencido de forma milagrosa, o
rei de Judá ficou doente “de uma enfermidade mortal” (2Rs 20:1). Triste, o rei
clamou a Deus por misericórdia. Deus enviou o profeta Isaías, que lhe informou
do plano divino em lhe conceder mais quinze anos de vida. Ezequias poderia ter
se contentado com aquela resposta. Afinal, Deus já havia realizado tanta coisa
no passado! Não haveria razão para duvidar da palavra do profeta. Mesmo assim,
Ezequias questionou a autenticidade da declaração de Isaías e pediu um sinal.
Indiferente à ofensa, Isaías lhe deu duas opções: “Você prefere que a sombra
avance ou recue dez degraus?” (2Rs 20:9, NVI).
Confesso que ver a luz do sol se
adiantar dez graus seria uma experiência surreal. No entanto, Ezequias sabia
que, em algum momento, ele mesmo poderia questionar a autenticidade do que
estava vendo. Afinal de contas, a luz estaria fazendo o que faz todos os dias:
avançar. A única diferença é que esse progresso se daria de forma acelerada –
certamente alguém encontraria uma explicação plausível para esse fenômeno. O
que seria realmente anormal era que a sombra do sol regredisse dez graus! Aí
sim! Estaria indo na contramão de tudo o que se conhecia (e se conhece até
hoje!). Ezequias pediu que a sombra retrocedesse dez graus, e assim aconteceu.
Gideão
O livro de Juízes relata como Gideão viu
o Anjo do Senhor e foi ordenado a lutar contra os midianitas (Jz 6). Embora a
ordem tivesse sido clara e o ajuntamento do povo de Israel pudesse servir de
confirmação do chamado divino de Gideão, parecia que ele tinha suas dúvidas.
Poderia ter sido uma visão, uma ilusão ou um devaneio. Quantas vezes já fomos
enganados pelos nossos olhos? Achamos que vimos algo ou alguém e logo
percebemos que fomos vítimas de uma ilusão ótica. Gideão precisava ter certeza.
Ele não podia permanecer só na esfera da subjetividade.
Assim, ele resolveu fazer um teste. “Eis
que eu porei uma porção de lã na eira; se o orvalho estiver somente nela, e
seca a terra ao redor, então, conhecerei que hás de livrar Israel por meu
intermédio, como disseste” (Jz 6:37). O teste parecia simples. É impossível um
pedaço de lã exposto ao relento ficar encharcado e o solo ao redor permanecer
seco. Só que algo ainda parecia incomodar Gideão. E se a lã absorvesse toda a
umidade ao redor? Não parecia tão improvável assim.
Gideão decidiu fazer algo que todo
cientista honesto faz nos dias de hoje: ele criou um grupo de controle e
inverteu o pedido: “Rogo-Te que mais esta vez faça eu a prova com a lã;
que só a lã esteja seca, e na terra ao redor haja orvalho” (v. 39). Pronto!
Assim ele estaria satisfeito. Independentemente de qual fosse a interação
natural da lã com a umidade, a outra experiência seria a prova de que Deus
estava com ele.
Todas essas histórias mostram que as
pessoas daquela época tinham uma clara percepção de como a natureza deveria se
comportar. Talvez não conseguissem explicar o movimento dos astros como Isaac
Newton fez, mas não eram adeptas de ideias mirabolantes sobre as leis da
natureza. Qualquer coisa que aparentasse anormal era recebida com ceticismo. No
caso de milagres, essas pessoas queriam ter certeza de que era Deus quem estava
operando naqueles fenômenos.
Diferente do ceticismo contemporâneo,
que rejeita a participação divina nos eventos da natureza, o ceticismo desses
personagens bíblicos tinha como objetivo se certificar de que era Deus que, de
fato, estava agindo. Longe de ser vítimas de alucinações, enganos ou ilusões,
aqueles que foram testemunhas das ações de Deus duvidaram do que seus sentidos
lhes diziam e buscaram evidências irrefutáveis da autenticidade dos eventos que
ocorreram. Tais exemplos nos inspiram a igualmente procurar desenvolver uma fé
inteligente, questionadora, que procura entender os caminhos de Deus e
discernir as ações dele na natureza.
GLAUBER S. ARAÚJO, mestre em Ciências da
Religião, é pastor e editor da Casa Publicadora Brasileira. Além da teologia,
se interessa pela física, astronomia e cosmologia