Na chamada “era da
pós-verdade”, nem mesmo o mundo religioso está imune à boataria da internet.
Mas por que, afinal, as pessoas consomem tanta informação falsa?
Essa avalanche de mentiras levou o Facebook, maior
rede social online, a anunciar no início do ano medidas mais rigorosas para
combater a disseminação desse tipo de informação, a partir da criação de
mecanismos para que os usuários identifiquem mais facilmente e denunciem
postagens suspeitas.
O fenômeno que tem ganhado espaço no debate público
foi tema do fórum “O Papel da Mídia Brasileira na Era da Pós-Verdade”,
promovido pela Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner) na última
terça-feira (4). Realizado na cidade de São Paulo, o evento reuniu jornalistas
e representantes de vários segmentos do mercado editorial.
Entre os exemplos citados, os boatos envolvendo a
campanha de Donald Trump receberam atenção especial. De acordo com um
levantamento feito pelo Instituto de Internet da Universidade de Oxford,
durante os últimos dias da corrida pela Casa Branca quase um quarto (23%) dos
links de artigos e notícias compartilhados no Twitter pelos usuários da rede
social, no disputado Estado de Michigan, direcionavam para teorias da
conspiração. Algumas delas “provavam” que Hilary Clinton havia criado o Estado
Islâmico, que Barack Obama era muçulmano e que o papa Francisco apoiava a
candidatura do bilionário republicano.
Nem mesmo o mundo religioso está imune à boataria
da internet. E o pior é que esses hoax, nome dado às farsas da web, sempre
encontram alguém crédulo o bastante para acreditar neles e espalhá-los aos
quatro ventos.
Em janeiro deste ano, uma publicação no Facebook,
com a foto do personagem Zé do Caixão ao lado de um conhecido pastor adventista
num templo da denominação, induziu muita gente a pensar que ele tivesse se
convertido ao adventismo, conforme anunciava a postagem.
“Boatos escatológicos” também costumam vir à tona
com frequência e se espalharem como fogo no mato seco. Uma “fofoca profética”
que ganhou terreno no WhatsApp dava conta de que o papa Francisco teria
pressionado o presidente norte-americano a assinar o decreto dominical. De vez
em quando, esse tipo de informação bombástica é ressuscitado.
Provas falsas
Descobertas falaciosas ligadas ao mundo da
arqueologia bíblica igualmente costumam pipocar na internet. “Uma simples busca
no Google sobre arqueologia das terras bíblicas nos leva para um mundo
encantado em que as histórias mais espetaculares das Escrituras são comprovadas
pela pá de arqueólogos ‘famosos’. Arca de Noé, carruagens egípcias no fundo do
Mar Vermelho, restos da peregrinação dos israelitas no deserto, ossos de
gigantes, e, lógico, a descoberta da Arca da Aliança. Isso tudo, porém, só
existe na internet”, esclarece Luiz Gustavo Assis, mestre em Arqueologia do
Antigo Oriente Médio pela Trinity International University (EUA).
Para ele, a maioria dessas “descobertas” não passa
de invenções da parte de pesquisadores amadores querendo validar eventos
bíblicos por meio de fabricações ou de sensacionalismo barato. Várias delas são
atribuídas a Ron Wyatt, um enfermeiro anestesista e arqueólogo amador, falecido
há quase 20 anos.
Alguns de seus supostos achados já foram tema de um
artigo escrito por Rodrigo Silva, especialista em arqueologia bíblica pela
Universidade Hebraica de Jerusalém, na edição de março de 2009 da Revista Adventista. “Por mais de uma vez tive a
oportunidade de visitar, com a equipe arqueológica da Universidade Andrews, os
locais a que Wyatt faz referência. Coletamos dados, fizemos análises,
entrevistas, etc. e, depois de tudo isso, posso afirmar, sem temor de erro, que
essas descobertas são completamente falsas”, esclareceu ele na matéria
intitulada “O êxodo que não existiu”.
Uma das teses de Ron Wyatt era a de que o Golfo de
Áqaba, perto de Nuweiba, seria o local da travessia dos hebreus. Ali, num trabalho
arqueológico submarino, Wyatt disse ter encontrado ossos humanos e rodas das
carruagens de faraó cobertas de corais. Numa foto publicada na internet e
disseminada num PowerPoint via e-mail, aparece uma roda de “ouro” com quatro
raios (aro quádruplo), mostrando semelhança com algumas rodas de carruagens
antigas expostas em museus.
“O que Wyatt não contou é que os egípcios tinham
dois tipos de carruagem: uma para a guerra, com aro sêxtuplo […] e uma para
passeios ocasionais, a quádrupla, que ele disse ter encontrado. Se a dita roda
fotografada por Wyatt fosse mesmo autêntica, teríamos de perguntar por que
faraó teria usado carruagens de passeio para perseguir o povo hebreu e deixado
em casa as carruagens de guerra?”, explicou Silva, que será o autor de uma
matéria de capa sobre arqueologia na RA de junho.
Conforme observou o apresentador do programa Evidências, da TV Novo Tempo, as peças fotografadas por
Wyatt provavelmente proviessem de navios cargueiros que afundaram na região
entre 1869 e 1981. A cidade de Hurghada, ao norte do Mar Morto, chega a abrigar
um sítio turístico para mergulhadores que desejam ver destroços de navios
naufragados ali.
Exemplos como esse demonstram que é preciso usar o
“desconfiômetro” ao se deparar com informações que tentam provar a
historicidade da Bíblia a qualquer custo. Por isso, Luiz Gustavo sugere que, ao
se deparar com uma notícia sobre arqueologia bíblica, a pessoa busque saber o
nome do pesquisador envolvido e o nome da cidade em que a descoberta aconteceu,
além de ver se existem artigos mais sérios publicados a respeito do assunto.
Pautar-se unicamente por aquilo que foi publicado em sites de notícias
evangélicas é arriscado.
“Se pretendemos transmitir uma mensagem verdadeira
a respeito das Sagradas Escrituras, devemos fazer uso de argumentos verdadeiros
no tocante à sua historicidade, não de boatos cibernéticos. Causamos grande
estrago para a reputação da Bíblia quando compartilhamos notícias falsas no
nosso zelo por defendê-la, ou simplesmente para ganhar likes em uma
publicação”, ressalta.
Relativização da verdade
Afinal, por que as pessoas acreditam e disseminam
notícias claramente falsas? Conforme argumentou o filósofo e professor da
PUC-SP Luiz Felipe Pondé na palestra proferida no fórum da Aner, uma possível
resposta é que as pessoas consomem o que vai ao encontro da sua visão de mundo.
“Consumimos mentiras porque gostamos de consumir o que nos diverte e o que
reforça nossos valores”, disse.
Confirmando essa ideia, Eugênio Bucci, jornalista e
professor da Universidade de São Paulo (USP) que também palestrou no evento,
argumentou que a paixão e o prazer se tornaram fatores decisivos na escolha das
informações, em detrimento da razão.
Pondé acredita que esse fenômeno também seja um
reflexo do pensamento relativista que se fortaleceu desde o século 19. Essa
tradição filosófica levou ao niilismo e, consequentemente, à negação ou à
relativização da verdade.
Do ponto de vista da psicologia, também é possível
identificar algumas causas do problema. O psicólogo Hélio Furtado argumenta que
hoje em dia as pessoas estão confusas e com o senso crítico bastante
comprometido. “Atribuo esse fenômeno à cultura narcisista e, em consequência, à
falta de sentidos duradouros nas relações pessoais e espirituais. Desnorteadas,
as pessoas compartilham e multiplicam sem pensar e se empolgam com fake news exatamente porque o real e factível na
sua própria vida carece de sentidos adequados para as coisas mais simples do
cotidiano”, analisa.
Para ele, isso se manifesta tanto na necessidade de
postar tudo que acontece numa rede social em busca de publicidade como no
sensacionalismo inerente às farsas da internet. “Estranhamente, o homem
contemporâneo dá mais importância ao que não é real, mas soa como novidade, do
que ao que é real e que deveria dar sentido a tudo o que ele pensa, fala e
faz”, completa.
Consumo de informações sem critério
A falta de filtros em relação às informações que
circulam na internet vem na esteira de uma tendência que se fortaleceu nos
últimos anos: a preferência do público pelo consumo de notícias nas redes
sociais.
Uma das conclusões do Reuters Institute Digital News
Report de 2016, levantamento que explorou os hábitos online de mais de 50 mil
pessoas de 26 países, mostrou que metade deles (51%) usavam as mídias sociais,
especialmente o Facebook, para encontrar, ler/assistir e compartilhar notícias.
Destas, 12% tinham as redes sociais como o principal meio de se informar sobre
o que acontece no mundo.
No Brasil, que figura como 3º do ranking, atrás
apenas da Grécia (74%) e da Turquia (73%), o percentual daqueles que disseram
consumir notícias nas redes sociais foi de 72%. Entre os participantes da
pesquisa, o país também foi o que registrou o maior crescimento desse hábito ao
longo de 2016.
O lado preocupante dessa tendência está relacionado
ao que foi apontado por outras duas pesquisas recentes. A primeira delas, realizada
pela Universidade Stanford, na Califórnia (EUA), envolveu alunos da educação
básica e universitários em 12 estados norte-americanos. Eles foram levados a
avaliar as informações apresentadas em postagens nas redes sociais. Com base
nas mais de 7,8 mil respostas obtidas, os pesquisadores chegaram à conclusão de
que, em geral, eles tinham dificuldade de discernir quais fontes de informação
eram verdadeiras e quais eram falsas.
Já a pesquisa Media Insight Project, iniciativa da
agência Associated Press e do American Press Institute, revelou que a
credibilidade de uma notícia divulgada nas redes sociais dependia mais de quem
havia compartilhado o conteúdo do que da própria fonte da informação.
Usando uma rede social semelhante ao Facebook, um
site fictício e conteúdos com a assinatura da AP para realizar o experimento,
eles perceberam que os participantes do teste se mostraram mais dispostos a
considerar verdadeiras aquelas notícias que haviam sido compartilhadas por
celebridades em que confiavam, independentemente da fonte que havia publicado
originalmente o conteúdo. Uma evidência disso foi que 52% dos pesquisados
disseram que acreditavam que a notícia fosse verdadeira pelo fato de ela ter
sido compartilhada por figuras de sua confiança, enquanto somente 32% disseram
a mesma coisa ao ver que a informação tinha sido divulgada nas redes sociais
por alguém menos confiável.
Também chamou a atenção dos pesquisadores o fato de
que apenas dois em cada dez foram capazes de identificar a autoria da
informação algum tempo depois de serem submetidos ao experimento. Em
contrapartida, metade dos participantes disse que lembrava da pessoa que havia
compartilhado a notícia.
Embora tenha sido feita com base na disposição das
pessoas em compartilhar informações divulgadas nas redes sociais por
celebridades, as conclusões do estudo parecem indicar um comportamento comum em
outros círculos de influência. “O estudo não considerou amigos no Facebook,
como o seu tio ou companheiro de faculdade, mas as implicações são claras. As pessoas
estão recebendo cada vez mais notícias de seus feeds de mídia social, e as
crenças de seus ‘amigos’ determinam o que eles veem regularmente, assim como um
editor que toma decisões sobre o que vai para um jornal”, divulgou o site da
Associated Press.
“Pessoas das quais gostamos e em quem confiamos
podem exercer grande influência não só no que vemos, mas no que acreditamos. Se
confiamos nelas, transmitimos essa confiança para as notícias que eles
compartilham”, acrescenta Tom Rosenstiel, diretor-executivo do American Press
Institute.
Era da pós-verdade
A chamada era da “pós-verdade”, neologismo que foi
eleito pelo dicionário Oxford como palavra do ano em 2016, tem despertado
fortes reações por parte das mídias tradicionais em várias partes do mundo. Não
é por acaso que, em alguns países, o Dia da Mentira (1º de abril) será seguido
do International Fact-Cheking Day, data comemorativa criada com o intuito de
ressaltar a importância da prática de checagem de dados entre os leitores.
Paralelamente, estão surgindo dezenas de sites e até mesmo agências de notícias
com a prerrogativa de serem “detetives” virtuais. Segundo o Knight Center,
vinculado à Universidade do Texas, hoje existem 114 iniciativas de
fact-checking em 47 países, a maior parte nas Américas e na Europa.
Ciente dos reflexos que a divulgação indiscriminada
de informações pode ter para a reputação da igreja, a liderança adventista
também tem buscado conscientizar pastores e membros quanto às implicações da
imprudência digital. Aliás, o assunto será tratado num dos artigos da edição de
maio/junho da revista Ministério, produzida pela Casa Publicadora Brasileira.
Numa época de tanta boataria cibernética que ganha
repercussão num piscar de olhos, é preciso ter sensibilidade e agir com
cautela, submetendo tudo ao “teste do polígrafo”. Também é preciso ter
consciência de que compartilhar inverdades só contribui para gerar
sensacionalismo, preocupações desnecessárias, fanatismo e “reformas” motivadas
pelos motivos errados (especialmente pelo medo), além de atrair a desconfiança
e o opróbrio sobre a igreja. Em longo prazo, o resultado é o desânimo e o
ceticismo.
“Não acreditemos apressadamente em tudo o que se
diz na internet, nem propaguemos o boato através de e-mails do tipo ‘FWD’. A
descoberta de uma fraude pode colocar em descrédito a verdadeira mensagem que
devemos anunciar”, conclui Rodrigo Silva.