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A palavra “ciência” vem do latim scientia. Em grego, a palavra correspondente é mátheema, que dá origem à palavra “matemática”. O significado em grego é o da totalidade do conhecimento, independentemente de já ser conhecido por alguém ou não. Para os pioneiros da Revolução Científica, a Matemática é a base de todo o conhecimento e dela vêm os elementos usados pelo Criador para fazer o Universo. Por essa razão, o uso da Matemática seria indispensável ao correto entendimento da realidade, tanto na área experimental (observações e testes de hipóteses) quanto na área teórica (elaboração de modelos matemáticos). Hoje em dia, olhando em retrospecto aos diversos tipos de modelos desenvolvidos nos últimos 400 anos, notamos um grupo que se destaca por ter eficiência infinitamente maior do que a dos demais. O que eles têm em comum? São modelos matemáticos, e são coerentes com a experimentação no caso de descreverem algo do mundo físico, exatamente como foi proposto pelos pioneiros e esquecido pela maioria dos seus seguidores.
No conceito de Galileu, a ciência funciona para o cientista como uma metodologia de representação e de pesquisa que em muito supera a abordagem filosófica tradicional. Hoje em dia, já teríamos condições de identificar a Ciência (com C maiúsculo) com a própria Matemática, que nos fornece uma “caixa de ferramentas” infinita para o estudo de todo e qualquer assunto, desde que tenhamos um ponto de partida. O poder conferido por essa forma de pesquisar é muito maior do que parece. Conseguimos fazer coisas que parecem mágica para quem está acostumado apenas a métodos tradicionais (não matemáticos). E o conhecimento que já adquirimos dessa forma está tremendamente à frente da tecnologia disponível atualmente para o público em geral.
É importante não confundir Ciência com aquela sequência de passos que normalmente vemos em livros de Ensino Médio: observação, formulação de hipóteses, testes, etc. Isso não é ciência, apenas uma receita que não deixa de ser útil em algumas circunstâncias.
Também é importante não confundir ciência com área do conhecimento. A Física, por exemplo, deve ser considerada uma área, não “uma ciência”. Essa área pode ser estudada com métodos da Ciência ou com métodos comuns como se fazia antes da Revolução Científica.
Para termos uma ideia um pouco mais clara sobre como funciona a pesquisa realmente científica e o papel essencial desempenhado pelo uso explícito da Matemática, é interessante pensarmos em alguns exemplos e contraexemplos.
A pesquisa de Isaac Newton sobre as leis do movimento são um bom exemplo de pesquisa científica. Já se havia notado que o estudo da Mecânica seria um bom ponto de partida para colocar em prática a ideia de fazer investigações usando a Matemática como instrumento ao invés da filosofia comum (Leonardo da Vinci foi um dos que comentou o assunto nas suas anotações). Mas Newton percebeu que seus conhecimentos matemáticos eram suficientes apenas para lidar com situações muito simples, beirando ao trivial. Movido, porém, pela ideia de que os conhecimentos matemáticos necessários estão impressos na própria realidade física, ele procurou essas pistas e as encontrou: descobriu assim o Cálculo Diferencial e Integral, que abriu as portas para a pesquisa de todas as leis físicas em geral. Hoje sabemos que não é possível ter um conhecimento razoável de como funciona a realidade sem pelo menos Cálculo Diferencial, e Newton encontrou isso logo na área mais simples que estudou. Leibniz seguiu um caminho semelhante e chegou às mesmas conclusões, embora tenha usado uma notação diferente, mais próxima da atual.
O Cálculo Diferencial gera o conceito de “equação diferencial”, sem o qual é inviável estudar as leis da realidade com um mínimo de profundidade. Note-se que estamos falando das leis que regem tudo o que existe, independentemente das chamadas áreas do conhecimento, limitadas por barreiras que a humanidade inventou para fins didáticos e de divisão de tarefas. As leis da Química, por exemplo, são apenas consequência e/ou casos particulares de leis físicas. O mesmo vale para as leis da Biologia e assim por diante, embora não pareça assim enquanto não aprofundamos o suficiente esses estudos usando os devidos instrumentos matemáticos.
O Cálculo Diferencial ajudou até mesmo a esclarecer questões teológicas, como quais seriam as consequências físicas da existência do Deus da Bíblia. Maupertuis (século 18) deduziu, a partir de passagens bíblicas, que se o Deus da Bíblia existe e é o Criador de todas as coisas, vale um princípio de otimização que foi denominado de “princípio da ação mínima”. A expressão matemática desse princípio é bem simples (uma fórmula com apenas quatro símbolos) e mesmo assim permite deduzir todas as leis físicas básicas, direta ou indiretamente. Esse princípio tem alavancado estudos em Mecânica, Eletromagnetismo, Relatividade Especial e Geral, Mecânica Quântica, Física Nuclear, Física de Partículas, Cosmologia e assim por diante. Hoje em dia, mesmo as pesquisas mais avançadas em Física usam constantemente esse princípio por causa de seu tremendo poder e exatidão, mesmo para investigar a possibilidade de existência de outros universos. Esse é outro ótimo exemplo de pesquisa científica, alavancada por Maupertuis com suas considerações matemático-teológicas.
Outro exemplo interessante é a Mecânica Quântica. No fim do século 19 e início do século 20, resultados de experimentos pareciam indicar que as leis de Newton não funcionavam no mundo dos átomos e das partículas subatômicas. Após várias tentativas de entender o que acontece de tão misterioso no mundo microscópico, encontraram-se duas formas, aparentemente sem conexão uma com a outra, de descrever matematicamente algumas regras válidas nesse domínio. Um estudo mais profundo, porém, mostra que ambas aquelas maneiras de representar coisas eram matematicamente equivalentes entre si, sendo casos particulares de aplicação de uma área da Matemática que podemos denominar de Teoria dos Espaços Vetoriais.
Para termos uma ideia do que vem a ser isso, imagine que você esteja em pé olhando para o norte. Sua orientação nesse momento pode ser descrita por uma seta (vetor) que aponta para o norte. Agora imagine que você gire para a sua direita 90 graus. Sua nova orientação pode ser representada por uma seta (um vetor) que aponta para o leste. O giro que você sofreu transformou sua orientação de norte para leste. Esse giro é um exemplo do que chamamos de operador. Operadores transformam vetores em outros vetores. Espaços vetoriais são conjuntos completos de vetores e suas respectivas operações.
A grande descoberta que levou à Mecânica Quântica foi a de que ao tentarmos representar grandezas físicas (como quantidade de energia, carga elétrica, etc.) com números estávamos usando de um artifício que não funciona sempre. Em particular, isso falha no mundo microscópico. O correto é expressar por meio de um vetor a situação (estado) em que se encontra um sistema e representar as grandezas (coisas que podem ser medidas) como operadores (operações que alteram vetores, isto é, alteram estados, situações). Uma consequência imediata é que uma medição pode alterar o estado que está sendo medido.
Usando o princípio acima (grandezas representadas por operadores e estados por vetores), podemos usar as leis de Newton no mundo microscópico e elas funcionam muito bem, obrigado. Aliás, podemos usar a mesma abordagem no mundo macroscópico também. O mecanismo matemático que nos permite trabalhar assim é o que chamamos de Mecânica Quântica. E ela nos permitiu descobrir coisas que não imaginávamos nem tínhamos quaisquer dados experimentais a respeito, como costuma ocorrer frequentemente na pesquisa realmente científica.
É importante tomar cuidado com o conceito de “conhecimento científico”. Vejamos um exemplo. Hoje em dia, estuda-se no Ensino Médio que átomos possuem um núcleo e uma eletrosfera na qual existem orbitais, que são ondas estacionárias de elétrons. Cada tipo de orbital tem um formato diferente. Seria este um exemplo de conhecimento científico pelo simples fato de haver sido descoberto por meio da metodologia científica? Não, isso é conhecimento comum, sem nada de especial em sua estrutura capaz de lhe conferir eficiência maior do que outros conhecimentos comuns do cotidiano. O conhecimento científico ligado a esse assunto é o da metodologia matemática que permite descobrir essas coisas: neste caso, como usar a Teoria dos Espaços Vetoriais para deduzir a existência e as propriedades dos orbitais.
Muitíssimo importante também é não confundir ciência com grupos de pessoas ou com atividades humanas. As pessoas têm opiniões e, por mais cuidadosas e bem fundamentadas que sejam as opiniões dos pesquisadores, elas não devem ser confundidas com algo que “a ciência diz”. A ciência é a metodologia matemática que usamos para guiar a pesquisa experimental e teórica, não os resultados ou conclusões obtidos.
O conhecimento humano está sempre mudando, e as interpretações filosóficas (paradigmas) das descobertas feitas também. Mas a ciência em si não muda. Ciência não se faz, descobre-se e se usa
(Eduardo Lütz é físico e tem atuado também em outras áreas como, por exemplo, Matemática, Informática, Filosofia, Linguagens e Educação. Foi, além de tradutor, professor de Ensino Médio, de escola técnica e de nível superior. Também é programador, analista de sistemas, arquiteto e engenheiro de software. Na Física, tem feito pesquisas em Astrofísica Nuclear, Física Hipernuclear, Buracos Negros e aplicações da Geometria Diferencial a estudos de Cosmologia. Atualmente, ocupa a maior parte de seu tempo em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias de software para a Hewlett-Packard)