Há razões bíblicas para não
frequentar o cinema? Antes de analisar a questão, tem de se admitir que o
problema não é simples. Embora a Igreja Adventista do Sétimo Dia sustente que o
cinema constitua um ambiente “mundano”, conclamando seus fiéis a não frequentá-lo,
faz décadas que objeções por parte de alguns de seus próprios membros vêm sendo
feitas a isso. Em sua maioria, defensores e contrários à prática usam a mesma
classe de argumentos, os quais se baseiam na cultura e em detalhes
técnicos do próprio cinema como mídia. Aqui a abordagem não seguirá esse
caminho. E por um motivo bem simples: não é a cultura ou a ciência que
determina o que deve ser praticado pelo cristão. Se fosse, a base de nossa fé
seria insegura e mutável. Como adventistas, acreditamos em três
princípios-guias (ou pressupostos) para orientar nossa experiência e
escolhas: sola Scriptura (somente as Escrituras), tota
Scriptura (as Escrituras em sua totalidade) e prima Scriptura (as
Escrituras acima de tudo).
Nesse caso, quais princípios bíblicos
poderiam ser evocados para defender a posição oficial da igreja? Com “posição
oficial da igreja” estou assumindo que a IASD ainda orienta seus membros a não
ir ao cinema, uma alegação que pode ser comprovada consultando o manual da
denominação e seus documentos envolvendo estilo de vida. Vale notar que edições
mais antigas do manual empregavam a palavra textualmente, enquanto as mais
recentes utilizam termos mais abrangentes, na tentativa de contemplar outros
tipos de mídia que existam ou venham a existir.
Voltando à pergunta: na
verdade, reconheço não haver um claro “assim diz o Senhor” no tocante à
frequência ao cinema, com todas as letras, por uma série de razões. A mais
óbvia: não é um problema dos tempos bíblicos, haja vista que se trata de uma
tecnologia mais recente, com cerca de pouco mais de um século. Então, quer
dizer que o assunto não deveria ser abordado biblicamente? Ora, as Escrituras
não encerram apenas ordens diretas (“não matarás”, “lembra-te do dia de
sábado”), todavia falam de princípios. Alguns exemplos de questões não
abordadas diretamente pelas Escrituras: Seria proibido consumir maconha? Seria
errado viver de forma consumista? A prática da eutanásia seria moralmente
aceitável? Em todos esses casos, é necessário mais do que “caçar versículos”
para tratar do assunto. Exige-se um tratamento mais amplo.
Por isso, sugiro uma abordagem
da teologia sistemática, aquela que faz mais do que simplesmente coletar
textos, mas reúne conjunto de passagens bíblicas, respeitando seu contexto, e
as agrupa por temas. O ideal seria termos uma teologia da cultura (quando
falamos de cinema, estamos procurando entender uma prática cultural à luz da
Bíblia), que cobrisse alguns temas, entre os quais, a frequência ao cinema.
Óbvio que algo dessa natureza é complexo. Assim, não é meu objetivo desenvolver
tal teologia completamente neste momento. Primeiro, por causa do espaço;
segundo, por achar que outros já fizeram isso com relativo sucesso,
especialmente o professor Demóstenes Neves, do Iaene. Neves escreveu um pequeno
livro intitulado Entretenimento e Mídia: Cinema, televisão, filmes e
internet, o qual traz pesquisa interessante sobre o assunto.
Os princípios elencados a
seguir também poderiam servir para abordar outras temáticas que envolvam a matriz
de nosso assunto (cultura à luz da Bíblia). Em um texto maior, de caráter
acadêmico, seria oportuno avaliar um pouco da história do cinema e de sua
influência como mídia. No entanto, aqui, para objetivos imediatos, nossa curta
análise se concentrará na Bíblia.
Peço a todos que analisem os
princípios de forma menos preconceituosa possível (embora, como é natural em
qualquer questão, tenhamos nossas opiniões prévias). Repetindo a pergunta: que
princípios poderíamos evocar para dizer que não devemos ir ao cinema? Sugiro os
seguintes:
1. A importância da
contemplação. Somos transformados por aquilo que contemplamos (Jr
2:5; 2Co 3:18), o que nos mostra que há consequências espirituais para todo
tipo de mídia que consumimos ou objeto que passamos a nos devotar (ou
simplesmente com o que gastamos tempo). Obviamente, alguns podem alegar que se
trata de entretenimento, mas nada é produzido no vácuo; há sempre um conjunto
de valores oferecidos e isso acaba tendo um efeito cumulativo sobre a
mentalidade de quem assiste (não significa que assistir a filmes violentos fará
alguém cometer crimes, por exemplo, mas poderá amortizar sua sensibilidade à
exposição da violência.
2. O imperativo de renovar a
mente. O que implica em fugir de padrões do mundo, que poderíamos igualar a
perspectiva secular, capaz de moldar nossas percepções e valores (Rm 12:2; Ef
4:22-24), muitas vezes contrários ao plano que Deus tem para nós. Na
perspectiva de que vivemos um grande conflito, é de se esperar que as
artimanhas de Satanás sejam sutis e disseminadas, para atingir todos sem que
percebam. Se há dúvidas de sua atuação, a leitura de Nos Bastidores da Mídia, de
meu amigo Michelson Borges, pode servir como introdução útil ao tema.
3. O princípio de filtrar
todas as coisas. Devemos selecionar tudo de acordo com critérios do
evangelho, constituídos por valores bem definidos (Fl 4:8), ao mesmo tempo que
há de se cuidar com o “mito da imunidade”. A Bíblia nos ordena a nem sequer
nomear algumas práticas pecaminosas (Ef 5:3), o que nos faz entender que
filtrar não significa assistir, ler, praticar ou experimentar algo e, em
seguida, ponderar (como se fôssemos imunes à exposição de práticas pecaminosas),
mas, em alguns casos, nem tomar conhecimento da prática ou consumir a mídia em
questão. Filtrar é dizer não ao que é claramente mal, em lugar de tentar
extrair lições de um conteúdo negativo.
4. A noção da dimensão
imaginativa do pecado. Uso esse termo “imaginativa” por ter relação com a
imaginação e os pensamentos humanos, embora tal dimensão não seja menos real do
que a dimensão prática do pecado, pois Jesus igualou ambas (Mt 5:21, 22, 27,
28; Jó 31:1). Principalmente esse ponto tem estreita ligação com a ficção (e
por séculos pensadores cristãos o entenderam), pois é comum o envolvimento da
pessoa com a mídia e a identificação solidária com personagens (a sensação de
que estamos dentro da história). Logo, quando eu assisto ou leio algo de
conteúdo contrário à Bíblia, os pensamentos assumem, por vezes acriticamente,
aquela perspectiva (como no exemplo de quando torcemos para o herói matar seu
inimigo ou quando queremos que o casal passe a noite juntos após se conhecerem.
5. A admoestação de fazer uso
adequado do tempo. Se o ser humano tem duração limitada de vida (Sl
90:10; Is 40:6-8), ela deve ser muito bem aproveitada, não apenas pela busca de
experiências significativas e satisfatórias (perspectiva secular), mas, para
além disso, em encontrar verdadeiro significado e satisfação em servir ao
Senhor (Rm 14:8; Cl 4:3-5). Um fator que contribui para isso é que vivemos em
contagem regressiva até o encontro com Jesus. Isso leva o apóstolo a nos instar
a viver de maneira qualitativamente distinta (Ef 5:15, 16). O entretenimento,
em geral, ocupa muito do tempo de nossa sociedade midiática, fazendo com que
muitas reflexões e experiências humanas fiquem desvalorizadas (não há tempo
para elas). E o que dizer de nossos esforços para pregar o evangelho e para buscar
viver o cristianismo? Será que tais preocupações não se perdem devido a
interesses divididos, ao tempo que gastamos com diversão, muitas vezes fútil?
Creio que é possível suscitar outras razões, embora tais princípios pareçam
suficientes para justificar a orientação da IASD.
Creio que é possível mencionar
outras razões, embora tais princípios pareçam suficientes para justificar a
orientação da IASD. Obviamente, o assunto aguarda por outras contribuições mais
amplas. E ainda prescindimos de uma teologia abrangente que lide com questões
relacionadas à cultura. Assim, a construção de um pensamento cristão,
fortemente construído a partir da Revelação, ajudará a conter tanto o
conservadorismo não embasado, quanto o liberalismo que desprestigia (por vezes, inconscientemente)
a Revelação como critério para avaliar cada prática culturalmente aceitável.
(Douglas Reis, Questão de Confiança)