Crise de liderança

 

É interessante que a descrição do chamado de Isaías é posterior à mensagem de acusação feita por Deus nos primeiros capítulos e à descrição da primeira visão do profeta. Alguns estudiosos propuseram que esse foi um segundo chamado, após o primeiro apresentado no capítulo 2. Enquanto outros entendem que a descrição do capítulo 6 está fora de lugar. Para os efeitos práticos de compreensão do livro, essa questão não tem relevância.

Isaías 6 inicia com a declaração de quando a visão ocorreu, o que nos permite localizar historicamente seu contexto. Uzias teve um reinado próspero que durou 52 anos porque fez o que era reto diante do Eterno (2Rs 15). Uzias foi bem-sucedido como administrador e rei, conseguindo expandir seu reino e aumentar seu poder. E seu poder foi sua fraqueza. Ele tentou usurpar a função do sacerdócio. Não resta dúvida de que havia, portanto, disputa de poder entre o palácio e o templo. É preciso lembrar que, de acordo com a teologia do antigo Israel, o Rei era considerado um ungido do Eterno, sendo por Ele adotado (veja, por exemplo, os Salmos 2 e 110, que falam dessa adoção. Cf. Roland Devaux, Instituições de Israel; Vida Nova, São Paulo, 2004, p. 137-141). Não seria, portanto, difícil que algum rei pretendesse ser maior que o sacerdócio. E isso ocorreu com Uzias.

Como resultado de seu orgulho, ele pretendeu oficiar no tabernáculo, sendo acometido por lepra, ou tsara, que se refere a um amplo espectro de enfermidades de pele. A tradição judaica tem entendido que a tsarat é uma punição direta por pecados relacionados a lashon hará, ou o uso irresponsável da palavra, seja por dizer mentiras, fofocas, ou palavras de ira e orgulho (veja Maimônides, Hilchot Tzara’at), que podem corroer sua alma, sua essência. E foi exatamente isso o que aconteceu com Uzias. A sua liderança foi sendo corroída por seu desejo de fazer o que não lhe era lícito fazer e sua ira o levou a ser punido.

O texto de 2 Crônicas afirma que a lepra apareceu em sua testa, ou sua fronte, utilizando o mesmo termo hebraico que indicava o local onde a inscrição de santidade ao Eterno deveria ser posta na fronte de Arão (Ex 28:36-38). Isso indica precisamente a natureza divina da punição e a natureza exata de sua falha: inveja associada com orgulho. Ele se tornou impuro ritual e externamente, mas possuía uma natureza e um coração corroídos, em contraste acentuado com Isaías, que, diante do Rei dos Céus, que estava em atitude de condenação contra Uzias, tendo os Céus como trono e o santuário como estrado (conforme entende Rashi, em seu comentário sobre Isaías 6: https://www.chabad.org/library/bible_cdo/aid/15937/showrashi/true/jewish/Chapter-6.htm), se declara pecador e se humilha.

Ao contemplar o Todo-Poderoso, de forma triúna (compare com João 12:40-42 e Atos 28:25), Isaías foi tomado pela certeza de que seus pecados causariam sua imediata destruição. Toda a cena do capítulo 6:1-9 é construída no intuito de apresentar a diferença essencial entre Deus e a criatura e, por isso, é descrita de forma magnífica, com superlativos.

Deus é visto não apenas em um trono, mas em um alto e elevado trono. O primeiro termo ram parece indicar a medida de altura do trono, e o segundo, nise, sua posição. Deus não apenas se assentava em um trono alto, mas em um trono que era mantido em elevada posição, muito além do próprio templo de Jerusalém, indicando, provavelmente, o templo celestial.  Diante Dele estavam serafins, anjos com seis asas: com duas eles cobriam o rosto, em atitude de modéstia, com duas cobriam os pés, e com duas voavam.

Do outro lado dessa cena sublime e espantosa, estava o mortal Isaías, habitante de Israel, que havia sido denunciado nos capítulos anteriores como nação pecadora e cheia de iniquidades, cujo rei e os líderes estavam falhando na função de exercer a liderança dada por Deus, e cujo povo simples falhava em manter-se fiel à aliança de Deus.  A morte era o resultado esperado, mas, pelo arrependimento e confissão, o perdão foi alcançado e o chamado dado.

Em seu livro A Survey of the Old Testament (Abingdon Press, Nashville-TN,1957), p. 241, de maneira perspicaz Willian W. Sloan resumiu a experiência do chamado de Isaías como um modelo do verdadeiro chamado:

1. Temor de Deus: tudo começa com o medo absoluto de um Deus absoluto;

2. Senso da pecaminosidade: a santidade põe a descoberto os pecados;

3. Reconhecimento do perdão: a graça lança os pecados no mar;

4. Chamado: então ouvimos a voz que nos chama;

5. Aceitação: a única resposta é “envia-me a mim”.

Nenhuma verdadeira adoração e serviço pode excluir esses elementos, quando o objetivo é Deus e não o homem. O temor de Deus, entendido como medo absoluto, prepara o mensageiro para não temer os homens a quem a mensagem, geralmente indigesta, deve ser dada. Ao entender que é pecador, mas ainda está vivo, a graça se torna viva e o poder do perdão é mais vívido. Esse perdão é, então, preparatório para o chamado à missão. Por isso, ele não pode ser apenas uma declaração, mas envolve uma dotação de poder. Ele vem com o toque da brasa do altar, que tira a culpa (avon) e expia os pecados (chattath). Os termos hebraicos utilizados aqui são exatamente os mesmos empregados para descrever o estado da nação de Israel no capítulo 1 de Isaías. Ou seja, mesmo o profeta, aqui, é participante dos pecados e culpado das iniquidades.

Foi apenas no momento em que o encontro com Deus ocorreu e a confissão brotou dos seus lábios, que Isaías pôde efetivamente ser transformado em uma nova criatura, capaz de ouvir a voz de Deus, que já falava com ele (o hebraico utiliza uma forma do imperfeito, indicando uma ação continuada). Isso quer dizer que o pecado conseguia tornar Isaías surdo ao chamado de Deus.

Nenhuma adoração, por mais bem pensada e bem-feita que possa ser, se não vier acompanhada dos cinco elementos que encontramos no texto de Isaías 6, é capaz de limpar os ouvidos do ser humano para ouvir a voz de Deus. E nenhum ser humano que tenha sido tocado pela brasa purificadora poderá responder à Voz que em seguida chama de forma diferente da resposta apresentada pelo profeta Isaías: “Eis-me aqui”.

Conheça o autor dos comentários para este trimestre: O Pr. Sérgio Monteiro é casado com Olga Bouchard de Monteiro. É pai de Natassjia Bouchard Monteiro e Marcos Bouchard Monteiro. É Bacharel em Teologia, Mestre em Teologia Bíblica cursa doutorado em Bíblia Hebraica. É Pastor na Escola do Pensar e no Instituto de Estudos Judaicos  Feodor Meyer. É membro da Adventist Theological Society, International  Association for the Old Testament Studies e Associação dos Biblistas Brasileiros.