Hermenêutica: interpretando corretamente a Bíblia

A hermenêutica apropriada tem a finalidade de discernir a mensagem de Deus
A hermenêutica pode ser definida como “a ciência e arte de interpretação bíblica”; ciência porque tem normas que possibilitam um sistema ordenado, e “arte porque a comunicação é flexível, e, portanto, uma aplicação mecânica e rígida das regras às vezes distorcerá o verdadeiro sentido de uma comunicação”.[1] Dito de modo simples, hermenêutica é a “disciplina que lida com os princípios de interpretação”.[2]
A hermenêutica é essencial para uma interpretação válida da Bíblia. Ao fazer uso adequado dela podemos ter maior certeza de estar ouvindo a voz de Deus, e não a voz da cultura, ou a nossa própria voz.
Razões para praticar uma hermenêutica apropriada
 Uma das razões pelas quais devemos praticar a hermenêutica apropriada é com a finalidade de discernir a mensagem de Deus.[3] Um cuidadoso sistema hermenêutico pode ser muito útil para discernir apropriadamente o que Deus disse em Sua Palavra, mediante mãos e mentes humanas. Assim, a hermenêutica nos protege da utilização indevida das Escrituras, que poderia nos levar a distorce-la para o nosso próprio interesse. Isso é possível porque a hermenêutica adequada fornece a estrutura conceitual para interpretar corretamente por meio de exegese acurada.
Uma segunda razão, é para evitar ou dissipar equívocos ou perspectivas e conclusões errôneas sobre o que a Bíblia ensina. Pode acontecer que algum leitor descuidado da Bíblia entenda que, se alguém da família está doente fisicamente, é suficiente confiar em Deus mediante a oração, sem buscar assistência médica. Entretanto, será que confiar em Deus implica em não buscar ajuda médica? Por acaso não é Deus quem capacita profissionais para ajudarem no cuidado da saúde? Certamente Deus pode usar meios variados para cuidar de nossa saúde, e a ajuda profissional de um médico pode ser um deles.
Finalmente, uma terceira razão para praticar a hermenêutica apropriada é para sermos capazes de aplicar a mensagem da Bíblia em nossa vida. De acordo com Carnell, termos ou expressões podem ser usados ​​em uma destas três maneiras: com apenas um sentido (univocamente), com diferentes significados (equivocadamente), e com um significado proporcional – em parte, a mesma, em parte, diferente (analogicamente).[4] Se aplicarmos essa classificação à Escritura, então podemos dizer que sua mensagem pode ser tanto unívoca, quanto equívoca, ou analógica.
Assim sendo, entidades como anjos, demônio, Deus, Jesus Cristo, etc., teriam o mesmo sentido para Paulo e João, do que para nós (compreensão unívoca). Por outro lado, termos como leão e serpente podem se aplicar a Jesus Cristo, ou a Satanás, dependendo da circunstância (equívoco). Isso pode ser evidenciado em I Pedro 5:8 e Apocalipse 5:5; 20:2 e João 3:14. Além disso, a Bíblia usa expressões em que se percebe relação de correspondência ou semelhança entre coisas e/ou pessoas distintas (analogia). É o caso, por exemplo, da afirmação “Vós sois a luz do mundo” (Mateus 5:14). Considerando que, ao longo dos tempos, as pessoas sempre possuíram ou possuem algum sistema de iluminação (tocha, vela, lamparina, lâmpada, lanterna, etc.), então essa analogia é compreensível. Obviamente, um correto sistema hermenêutico é extremamente útil na explicação de termos unívocos, equívocos e analógicos.
Tarefa desafiadora
Sustentar a ideia de um Deus que se revela num texto escrito não foi algo desafiador para o cristianismo no primeiro milênio e meio de sua história. De fato, por causa de sua origem judaica, o cristianismo primitivo habituou-se a reconhecer a autoridade dos documentos escritos como Escritura – ou seja, os cristãos acreditavam que a revelação e vontade de Deus estavam localizadas em materiais escritos que serviam para o culto e para as necessidades morais da comunidade de fé. “A noção de que a autoridade residia no que depois foi chamado de Escrituras do Antigo Testamento nunca foi questionada na comunidade cristã primitiva”.[5]
Todavia, na atualidade falar da revelação divina não é uma tarefa fácil. Afirmar hoje em dia que a Bíblia foi dada por Deus, e que por isso difere de qualquer outro texto, requer justificativas e explicações muito bem fundamentadas,[6] as quais são pouco aceitas especialmente em sociedades céticas e secularizadas.
Entretanto, a despeito de argumentos muito bem estruturados que se possam oferecer, a crença na revelação de Deus ao ser humano requer fé. Mas, como McGowan se apressa em afirmar, isso não significa tratar o cristianismo como anti-intelectual ou racionalmente inconsistente, beirando a um “cego fideísmo”.[7] Afinal, há várias obras que tratam da temática da racionalidade da fé cristã, e o fazem com admirável consistência.[8]
Em última instância, como afirma Duncan Ferguson, a fé é uma pré-compreensão necessária para interpretar corretamente a fé cristã.[9] Isso não significa – sob hipótese alguma – que haja necessariamente oposição entre um estudo literário ou histórico da Bíblia e a fé. Todavia – como destacado por Ferguson – evidências históricas podem até sugerir a atuação de Deus nos eventos, “mas elas não podem suprir a experiência pessoal de confiança e compromisso no Senhor ressuscitado”.[10] Assim, para a compreensão e prática de uma hermenêutica bíblica, torna-se necessário o debate a respeito da Cristocentricidade da Escritura, com vistas à efetivação da confiança e compromisso pessoais do leitor contemporâneo.
Ao encerrar essa breve reflexão é importante lembrar que o desafio da leitura e compreensão da Bíblia é tal, que os cristãos devem encará-lo com cuidado e esmero; afinal, estão diante de um texto diferenciado, a auto-revelação de Deus. E, nesse sentido, o teólogo G.C. Berkouwer afirmou que “não há questão mais significativa em toda a teologia e em toda a vida humana do que a natureza e a realidade da revelação”.[11] Assim, os “cristãos sempre têm crido que a Bíblia é a Palavra de Deus”, e com isto entendem que “ela tem sua origem na atividade revelatória do Deus pessoal de quem ela fala […] e pela qual Ele se comunica com Suas criaturas que Ele fez”.[12]

[1] Virkler, Hermenêutica Avançada: Princípios E Processos De Interpretação Bíblica. 9.
[2] Silva, Introdução À Hermenêutica Bíblica: Como Ouvir a Palavra De Deus Apesar Dos Ruídos De Nossa Época. 15.
[3] Os três itens comentados a seguir estão fundamentados em Klein et al., Introduction to Biblical Interpretation. 19-21.
[4] Edward John Carnell, An Introduction to Christian Apologetics : A Philosophical Defense of the Trinitarian-Theistic Faith, 3d edition. ed. (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1948). 144.
[5] Lee Martin McDonald, The Formation of the Christian Biblical Canon, Rev. and expanded ed. (Peabody, Mass.: Hendrickson Publishers, 1995). 1.
[6] A. T. B. McGowan, The Divine Authenticity of Scripture : Retrieving an Evangelical Heritage (Downers Grove, Ill.: IVP Academic, 2007). 31.
[7] Ibid. 31, 32.
[8] Algumas dessas obras: Cornelius Van Til and K. Scott Oliphint, The Defense of the Faith, 4th ed. (Phillipsburg, N.J.: P & R Pub., 2008). William Lane Craig, Philosophy of Religion : A Reader and Guide (New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 2002); Reasonable Faith : Christian Truth and Apologetics, 3rd ed. (Wheaton, Ill.: Crossway Books, 2008); William Lane Craig and Chad V. Meister, God Is Great, God Is Good : Why Believing in God Is Reasonable and Responsible (Downers Grove, Ill.: IVP Books, 2009).
[9] Ferguson, Biblical Hermeneutics : An Introduction. 63.
[10] Ibid. 64.
[11] G. C. Berkouwer, General Revelation, His Studies in Dogmatics (Grand Rapids,: W.B. Eerdmans Pub. Co., 1955). 17.
[12] McGowan, The Divine Authenticity of Scripture : Retrieving an Evangelical Heritage. p. 31. Conferir também Jack Kuhatschek, Taking the Guesswork out of Applying the Bible (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1990).