Um dos princípios básicos para a compreensão
das Escrituras é a continuidade harmônica entre seus componentes. Há uma linha
dourada que percorre cada página do texto sagrado, que permeia todas as
histórias e empresta significados transculturais e atemporais para os
princípios nela existente. Isto quer dizer que ao analisarmos um texto, ou
sistematizarmos uma doutrina, é preciso olhar o todo das Escrituras. Cada
história possui uma tessitura nem sempre perceptível ao leitor superficial.
Esta tessitura intratextual, por seu turno, faz parte de um todo maior, que
compõe o quadro da doutrina bíblica, com nuanças expansivas e detalhes que se
sobrepõem e se explicam em tempos diferentes e contextos distintos.
Esta base hermenêutica é muito útil para compreendermos a lição desta
semana. Desde as primeiras lições viemos falando sobre a Mordomia no contexto
da criação. Como Satan subverteu o objetivo original da criação, sua ordem e
harmonia, colocando em seu lugar a luta para subjugar a Terra e a batalha para
extrair da Terra subsistência e suprimentos para necessidades antes
inexistentes e que o seriam ainda caso estivéssemos no Éden.
Nesta semana, o tema é continuidade do aspecto positivo. Homens e
mulheres que se mantiveram fiéis ao modelo original de harmonia com a Terra,
ainda que em um contexto de pecado e desarmonia.
Nos tempos da Bíblia Hebraica, erradamente chamado de Antigo Testamento,
a função de mordomo era de fato uma função de administrador. A expressão
hebraica comumente traduzida por mordomo, em Gen. 43:19 é ‘ish ‘asher al-bait
que literalmente quer dizer “o homem que está sobre a casa” e indica alguém que
tem sob seus cuidados absolutamente tudo o que está na casa, desde bens, até
pessoas, incluindo o cuidado do dono da casa e família. Ele não se limita ao
cuidado do que é material apenas. Ele representa o próprio dono da casa, como
aliás, reconhecem os irmãos de José, no próprio verso. Entretanto, o verso 15,
agrega o pronome hebraico ô, que é o possessivo da terceira pessoa, “dele”. Ou
seja, aquele que cuida de toda a casa, e representa o seu senhor, não tem posse
sobre os bens do seu senhor, nem sobre a casa, ou família do seu senhor. Ele
reconhece que sua autoridade é limitada e vive tranqüilo com isto. Ele não
ordena nada a seus senhor, não determina nada àquele que tem a soberania sobre
a casa.
No comumente chamado Novo Testamento, a continuidade das Escrituras
Sagradas, a função de um mordomo é a mesma. Ele possui atribuições
administrativas e domínio sobre a casa de seu senhor. A figura do mordomo no
Novo Testamento é utilizada de forma mais espiritual do que na Bíblia Hebraica.
De fato, muito embora toda a história de Israel possa ser contada ou por seu
sucesso ou sua falha em administrar o que o Eterno lhe concedeu, o foco está
sempre no que D-us que dá, mais do que em como o homem utiliza. Certo é que as
conseqüências vêm, mas o foco está na multiforme graça de D-us que segue
confiando em Seu povo e sendo Seu D-us.
Já no Novo Testamento, as expectativas da resposta humana a graça
dispensada são postas de forma mais universal. Não se trata mais da história de
um povo que caminha com Seu D-us, mas da História de um D-us que se torna homem
para caminhar com eles. Por isto, a noção de resposta se torna muito mais
evidente do que a noção de alguém que tem senhorio representativo sobre uma
casa. O ser um mordomo fiel, um administrador eficaz, brota do reconhecimento
do cumprimento das promessas divinas de salvação e redenção. E não apenas isto,
Se a função daquele que “está sobre a casa” é cuidar da família que habita na
casa, a função espiritual daquele que é fiel a D-us é cuidar de toda a família
divina. De que maneira? Pedro responde, em sua 1 carta, cap. 4:10 e 11:
Cada um administre aos outros o dom como o recebeu, como
bons despenseiros da multiforme graça de Deus. Se alguém falar, fale segundo as
palavras de Deus; se alguém administrar, administre segundo o poder que Deus
dá; para que em tudo Deus seja glorificado por Jesus Cristo, a quem pertence a
glória e poder para todo o sempre. Amém
Ou seja, a administração dos dons, envolve o compartilhamento dos dons.
É horizontalidade do Evangelho. Todo o Evangelho precisa ser cartesiano. Ele
possui um plano vertical, que tem a ver com ouvir D-us, descansar em D-us, ter
comunhão com D-us, usufruir de Seu amor e devolver a Ele o seu amor. E este
envolvimento vertical, redunda obrigatoriamente em um plano horizontal, no qual
as bênçãos de uma vida vertical,são compartilhadas com o seus iguais. Isto é
administração bíblica. E isto é possível apenas com o poder de D-us, diz Pedro.
Há um aspecto essencial que precisamos considerar nas funções de alguém
“que está sobre a casa”, um mordomo fiel. Ele cuida dos “mistérios” de seu
senhor. Isto significa basicamente que ele conhece seu senhor de forma muito
melhor que aqueles que não participam de sua intimidade. Fora do círculo
familiar, é com ele que o senhor compartilha inquietudes, alegrias, anseios,
decisões e planos. É dele que muitas vezes, o senhor toma conselhos, pois o tem
como alguém fiel e confiável.
Obviamente, não daremos conselhos ao Eterno. Mas, nos limites de nossa
humanidade e relacionamento, cada mordomo fiel é chamado a bem-guardar os
mistérios de D-us. Bem-guardar, por mais paradoxal que possa parecer, neste
contexto significa anunciar de forma precisa e verdadeira, e não guardar para
si mesmo. O termos grego mysterios não significa algo que não possa ser
conhecido, mas au contraire, aquilo que ainda não compreendemos plenamente, mas
do qual sabemos alguma coisa. Os mistérios da encarnação, da salvação, da
iniquidade, por exemplo. Conhecemos sua existência, mas não a completa
essência. E não precisamos, porque, como mordomos, não precisamos entender
tudo, mas aceitar, sabendo que administramos os mistérios, não os possuímos.
D-us nos entregou mensagens a serem transmitidas a um mundo que perece.
São mensagens de advertência e de chamado ao arrependimento. São mensagens que
devem soar ao ouvido de cada pecador anunciado a graça Salvadora de J-sus. Esta
é nossa responsabilidade: ser atalaias que tocam a trombeta no tom certo e no
tempo certo (Ez. 33). Mas algo parece não estar certo. Estamos adocicando
demasiadamente a mensagem. Não estamos tocando a trombeta de alerta para um
povo que se torna cada dia mais distante de D-us. Estamos tocando flautas, com
músicas agradáveis e palavras que mais soam como cantigas de ninar para
crianças. Vivemos a era do politicamente correto, das pregações de auto-ajuda,
cuja Bíblia se transformou em um slide de PowerPoint, lido apenas para compro
uma mensagem que coça os ouvidos mas não produz transformação alguma! Isto não
é ser um mordomo fiel! Isto não é administrar as verdades eternas e espirituais
com o Poder de D-us, mas com timidez e covardia. Lembrem-se sempre que o
politicamente correto é invariavelmente teologicamente incorreto.
D-us entregou a Israel uma liberdade que não souberam utilizar, muitas
bênçãos que não souberam usufruir, um Tempo (Sábado) que não souberam
santificar, Um Templo que não souberam consagrar, e um Messias que não souberam
reconhecer. Por isto, a nação sofreu tantas e tantas destruições e derrotas.
Mas a Graça do Eterno sempre esteve a apenas um erguer da voz e das mãos.
Estamos em tempo de nos transformarmos em mordomos MAIS fiéis, porque essa
mesma Graça ainda está disponível, fluindo de onde sempre fluiu: do Santuário
pela Cruz.
Sérgio Monteiro e amigos (IASP)