
Ramona[1] senta-se na cadeira, em
frente à minha mesa. Antes de abrirmos a Bíblia, ela fala sobre seus dezesseis
anos loucamente vividos. Seus amores perdidos, seus complexos, a conturbada
relação com o pai – tudo passa diante de mim num atropelo eloquente e doloroso.
Mas ela precisa contar para descarregar o peso de tantas dúvidas e cicatrizes.
Estudar a Bíblia com Ramona, uma adolescente
inteligente e sem qualquer cultura religiosa, é sempre desafiador, porque ela
faz perguntas que parecem inocentes, porém demandam reflexão cuidadosa – embora
em geral, sua atenção se fixe de um ponto a outro com velocidade tal que, na
metade da resposta, ela já tem outra pergunta. Uma das preocupações de Ramona:
qual a diferença de se crer ou não em Deus? Por que temos de ter fé?
A fé sobrevive?
Se pretendemos falar sobre crença, esse é um bom
ponto de partida: para que serve uma fé?
O papel diminuído da religião deve ser bem
entendido. Por um lado, há a perda de sentido religioso, fruto da modernidade.
A confiança na estrutura social, dentro de uma mentalidade capitalista e no
contexto do racionalismo, leva à visão de que Deus seja um conceito
desnecessário, fantasioso e até nocivo.
Vários países são estados laicos declarados. Até
mesmo pessoas religiosas temem a imposição religiosa. Logo, o medo “de
imposição de visões religiosas frequentemente evoca medidas por uma supressão
de vozes religiosas da praça pública.”[2]
O outro lado da moeda da perda de sentido religioso
chama-se pós-modernidade. No pensamento pós-moderno, as religiões se equivalem.
As crenças são despidas de seu formalismo e da ligação com instituições
tradicionais. Cada comunidade pode selecionar aspectos religiosos de diversas
crenças e reorganizá-los para expressar uma crença própria. Nesse jogo, vale
tudo, até reformular indefinidamente as próprias crenças.
O experimentalismo pós-moderno reaproxima as
crenças, enfatizando aspectos comuns de forma mais superficial. Vivemos em
“zonas de fronteiras”, onde não há limites, mas tudo se mistura; “linhas
[divisórias] são traçadas sobre a areia movediça apenas para se apagar e ser
traçadas no dia seguinte.”[3]
Apesar de tudo o que dissemos, cada vez mais
pessoas creem em Deus ou assumem uma religião. Por quê?
Motivos para ser religioso
Há um paradoxo entre a perda de sentido religioso e
um sensível aumento de toda sorte de crentes. Talvez isso se explique pelo
entendimento geral da religião. As pessoas são religiosas, contudo as crenças
são relegadas a uma subcategoria, abaixo de questões mais práticas do dia a
dia. Deus não faz parte do processo decisório de muitos que alegam crer nEle.
Urge que retomemos a questão formulada no início: para que serve uma religião?
Há muitas respostas, mas quero propor dois pontos:
(1) A religião ideal provê o fundamento metafísico,
o qual confere um senso de origem e propósito. Céticos tentam
estabelecer a possibilidade do próprio homem criar seu destino, sem que uma
divindade o referencie. Eles opinam que o homem se tornaria um fantoche nas
mãos da divindade, perdendo sua liberdade. Vale mencionar que a visão
racionalista não conseguiu produzir um substituto à altura da cosmogonia
religiosa. O pensamento secular é insuficiente para equilibrar a tensão entre
interesses pessoais e coletivos, ainda mais tendo em vista a perda do senso de
propósito maior, fundamento da ética, em todos os âmbitos.
(2) Uma religião provê a necessidade de conhecer e
se relacionar com a divindade. O cristianismo, em especial, é uma religião
de revelação, apresentando um Deus que Se interessa tanto pela humanidade que
criou a ponto de tomar a iniciativa. Sim, Ele não esperou que tentássemos
conhece-Lo (até porque nossa razão tem seus limites); Deus veio mostrar quem é,
para todos desfrutarmos de Sua presença. Inclusive eu, Ramona e você.
Douglas Reis - (Questão de Confiança)
[2] Miroslav
Volf, A public Faith, A public Faith: how followers of
Christ should serve the common good (Grand Rapids, MI: Brazos Press,
2011), p. X.
[3] Zygmunt
Bauman, Ensaio sobre o conceito de cultura (trad.: Carlos
Alberto Medeiros; Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2012), p. 75-ss.
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